Esta reflexão foi desenvolvida a partir das considerações apresentadas pela Profª Adriana Facina no artigo “Guerras necessárias, humanos supérfluos”.
Dessa forma, avaliar a questão da violência apresentada pelos grandes meios de comunicação e como as autoridades estão tratando o assunto, considerando os últimos episódios, remete-me a Todorov[1], que trata da repressão como meio de “propagar” o esquecimento de fatos, onde os agentes do Estado utilizam eufemismo e frases ambíguas para justificar seu “modus operandi”. Artifício este que visa direcionar e manipular a memória dos indivíduos.
A construção de uma “realidade” que interessa a determinados grupos, visando a manutenção do seu “status quo” e a banalização da vida, faz com que o “senso comum” parta da premissa que todo pobre ou favelado é criminoso. Evidencia-se isso ao assistir as reportagens sobre crimes e ações policiais onde os cidadãos (?) que se encontram nesta situação são, na maioria das vezes, associados – no mínimo – ao tráfico de drogas ou a crimes, com pouca ou nenhuma averiguação por parte da mídia de quem se trata. Quando o crime ou ações policiais são no “asfalto”, os envolvidos geralmente têm nome e sobrenome e com direito aos familiares utilizarem-se dos meios de comunicação para “atestarem a idoneidade” do acusado.
Utiliza-se o argumento de que “estamos em guerra” para justificar as ações policiais que culminam com mortes (ou seriam execuções?). Entretanto, como não estamos oficialmente em “Estado de Guerra”, é difícil justificar as mortes em ações policiais, visto que o artigo 37 da Constituição Federal, em seu parágrafo 6º, trata do Princípio da Legalidade, segundo o qual os Agentes Públicos são obrigados a atuar dentro da legalidade sob pena de serem responsabilizados pelos seus atos. E, exceto numa situação de confronto armado, o criminoso ou o suspeito de crime deveria ficar sob a custódia do Estado. Soma-se a isto o fato do Brasil ser signatário do Pacto de São Jose da Costa Rica, que estipula o princípio da presunção de inocência do indivíduo. O direito à vida, ao contraditório e à ampla defesa estão elencados na Constituição Federal. Direito este que no país parece ser privilégio de poucos.
No filme Insurreição, da série Star Trek, o capitão Jean-Luc Picard pergunta ao seu superior - este envolvido num plano de transferir uma raça de um planeta para que outra, que geraria "mais lucro", possibilitasse o acesso a uma espécie de fonte da juventude -: "quantas pessoas são necessárias para que isso seja uma injustiça?".
É comum nos diversos meios de comunicação e no discurso de várias autoridades a forma ‘JUSTIÇA SOCIAL”. JUSTICA NÃO PRECISA DE ADJETIVO.
A questão da violência não se resolverá com políticas personalistas de governantes, mas com políticas de Estado onde o “Welfare State” não seja para uma minoria. Onde o Estado “pense” em questões essenciais como Educação, Moradia e Emprego. Nesta perspectiva, não é difícil avaliar o tipo de sociedade que se deseja construir ao compararmos o concurso para o Magistério do Estado do Rio com o da Área Judiciária. O primeiro abriu com uma remuneração básica de cerca de R$ 600,00 para profissionais de nível superior. Por outro lado, o concurso para área Judiciária o salário base fica em torno de quatro vezes este valor para candidatos que tenham ao menos o Ensino Médio.
Criar o chamado “cordão-sanitário”, nos moldes estadunidenses para conter a área de influência da então U.R.S.S. no pós-guerra, para a população periférica implicará cada vez mais o uso do Poder Coercitivo e também Ideológico (com o beneplácito da grande mídia que se diz neutra).
É preciso, por exemplo, pensar nos motivos que levam uma população a residir no que se convencionou chamar de favelas. Vou me deter em apenas um deles. Nesta política da tão alardeada “liberdade de mercado” e a falta de investimento em transporte, considerando as dimensões do país (trem, hidrovias por exemplo), as empresas colocam em seus anúncios de vagas, com freqüência, quais as áreas onde os interessados devem morar para reduzirem seus custos com o famigerado vale-transporte.
Nesta lógica de mercado, onde o TER é mais importante do que o SER, a “construção da banalização da vida” começa num simples videogame. Um grande número destes jogos são de combate que, com a tecnologia, chegam bem próximo à realidade. Porém, obviamente, no jogo com uma grande e principal diferença, é possível ter vidas extras e começar tudo de novo. Estimula-se nas crianças e adolescentes a uma cultura beligerante.
Assim, interesses específicos de grupos dominantes transformam, em certa medida, a “Tropa de Elite” e o “Caveirão” em lugar de memória.
“(...) Os lugares de memória pertencem a dois domínios, que o tornam interessante, mas também complexo: simples e ambíguos, naturais e artificiais, imediatamente oferecidos à mais sensível experiência e, ao mesmo tempo, sobressaindo da mais abstrata elaboração (...)”[2]
“(...) Lugares, portanto, mas lugares mistos, híbridos e mutantes, intimamente enlaçados de vida e de morte, de tempo e de eternidade; numa espiral do coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado, do imóvel e do móvel (...)”.[3]
Cria-se, através da lógica perversa do capital, um “apartheid” exacerbado no etnocentrismo de um grupo, que constrói, em larga medida, uma “cidade ordenada e letrada”[4].
É preciso “transformar o exótico em familiar e/ou transformar o familiar em exótico”[5] para se buscar alternativas num período onde as “guerras preventivas” justificam o massacre da população civil. É preciso haver um “estranhamento”[6] para lidar com as idiossincrasias.
Em última análise, para a dialética, o fundamento ontológico da historia é a relação do homem com outros homens, o fato de que o “EU” individual só existe por detrás da comunidade[7].
Assim, é preciso realmente construir um Estado de Direito e não um estado beligerante onde o braço policial do Executivo assuma prerrogativas que é do Judiciário. Neste caso, conforme a legislação vigente, não seria atribuída a pena capital ao condenado.
[1]TODOROV, Tzvetan. “Memória do mal, tentação do bem”. In “Indagações sobre o século XX”. Tradução: Joana Angélica D’Ávila. Editora Arx. Cap. 3 – “A conservação do Passado”. pp. 9-13, 133-171.
[2] Nora, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares, IN: Projeto-História. PUC, SP, (10), dez 1993, trad. Yara Aun Khoury pp. 7-28.
[3] Idem, ibidem;
[4] RAMA, Angel. Cidade das Letras. SP. Brasiliense, 1984. (Cap 1: A cidade ordenada e Cap 2: A cidade das Letrada) pp 23-53
[5] Da Matta, Roberto. Relativizando. IN: “Uma introdução a Antropologia Social”, Ed. Vozes Ltda. 1981. Petrópolis – RJ; pp. 11-59 e 86-173;
[6] MARX, Karl. Manuscritos Económicos-Filosóficos. Ed. Martín Claret. São Paulo, 2006
[7] GOLDMANN, Lucien. “Epistemologia e Filosofia Política”, Lisboa: Editorial Presença, 1984
José Ricardo Rodrigues (Observatório da Indústria Cultural/UFF), com colaboração do formando em Direito Álvaro Vaine Rodrigues Filho
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