quarta-feira, 14 de novembro de 2007

A violência contemporânea: algumas reflexões*



O pensador contemporâneo Raymond Williams (1921-1988), em sua obra Palavras-Chave: um vocabulário de cultura e sociedade (SP: Boitempo Editorial, 2007), já adverte que violência “é hoje, frequentemente, uma palavra difícil”. Frisa que “o poder emocional dessa palavra pode causar muita confusão.” Williams conclui o breve estudo do termo violência nesse livro, evidenciando que “se trata, portanto, de uma palavra que necessita de definição específica inicial, se não quisermos cometer uma violência contra ela, ou seja, arrancá-la do seu significado que remonta a fins do século 16.” A obra de Williams sugere de outro modo que sejam feitas configurações e reconfigurações dos significados de várias palavras-chave, como violência, que adquirem seus sentidos historicamente, isto é, a violência está na história e é usada pela história. A presente reflexão sobre violência é parcialmente inspirada nas idéias desse autor. Não vamos relativizar o conceito violência, tão pouco por um ponto final, mas propor reflexões marginais que possam colaborar na sua definição e principalmente no seu melhor emprego.



Somos bombardeados diariamente pela violência, nas suas diversas manifestações. Esse tema é recorrente, sobretudo na mídia, nos grandes jornais e revistas, bem como nos vários noticiários da TV local ou nacional. A partir disso precisamos questionar: como a mídia nos dá a ler o que seja violência? Com que fins ela explora a violência? É preciso perceber que, por tratar-se de um tema de apelo emocional significativo, a mídia tende a usar a violência como carro-chefe para a venda e audiência de seus jornais. De outro lado, os vários meios de comunicação classificam todos os atos de grupos de resistentes, manifestantes e questionadores do status quo de violentos, mas não problematizam a possível violência indireta que vivem ou viveram, até partirem para uma ação direta violenta e objetiva, não banal, como querem nos fazer crer muitas vezes. As mídias também são imperdoáveis e intransigentes com qualquer tipo de violência hedionda, praticada por indivíduos criados em ambientes extremamente corruptos e indignos, que possuem traumas psíquicos profundos, mas nunca problematizam a barbárie à que foram e estão sujeitos, e por elas são chamados de bárbaros.



É difícil, mas é necessário ampliar as noções ou relações do conceito de violência, questionar a noção maniqueísta ligada a violência, ou seja, a simples idéia de que, quem pratica violência são os maus e os outros são os bons. Temos de ter clareza de que na sociedade contemporânea a violência é banalizada, porém transmitida de forma maniqueísta. Somos violentados e violentamos pelo excesso de violência na mídia, na TV, que deste modo vai formando uma sociedade fundada no medo. A história do século 20 nos mostra que o resultado da inoculação constante do medo na sociedade é a formação de governos totalitários, extremamente violentos, capazes de atrocidades.



Mas a mídia, ao abordar a violência do Estado, tanto junto a grupos opositores e reivindicatórios, quanto aos marginais que trazem históricos de vidas que não lhes sugerem outra opção, senão a bandidagem, usam outras expressões para a violência institucional, como força, ou defesa. Não empregam violência para os crimes do colarinho branco, de desvios de verbas e assaltos aos cofres públicos, de cifras faraônicas, que geram vácuos incalculáveis na assistência social de milhões, que são seduzidos, por exemplo, pelo crime organizado que os rodeia. Os pobres violentos são os preferidos no tribunal da inquisição midiática. Entretanto, quando os facínoras que deflagram violências maiores e mais banais são jovens de classe média ou alta, deprimidos e entediados pelo consumismo e opulência vazia de suas vidas, a mídia tende a amaciar no trato e procura achar respostas junto a uma sorte de especialistas de gabinete.



Faz se necessário uma leitura a contrapelo, procurando observar como as sociedades lidam historicamente com a violência. Quando somos roubados, assaltados, baleados, respondemos de forma impetuosa e emotiva, com um desejo ainda maior de violência e agressão. Essa parece ser a maneira mais comum de relação com a violência, e nesses arroubos a repressão imediata se coloca como única solução. Mas se analisarmos a questão do narcotráfico (associado de forma simples e direta à violência) e refletirmos as relações de tal setor criminoso com outras esferas de organização da sociedade, vislumbrando a questão sob a ótica de um mercado de drogas e seu amplo uso na sociedade, por exemplo, veremos que a repressão generalizada não dá conta de uma possível solução para conter ou diminuir a violência. Trata-se indubitavelmente de uma análise complexa, difícil, perigosa talvez, tanto que são poucos os especialistas que ousam discutir sob outros prismas.



Pois bem, a humanidade manipula há milênios, e até há pouco tempo atrás de forma restrita e ritualística, algumas das chamadas drogas ilícitas. Mas hoje a utilização destas foi ampliada e banalizada. Seu consumo, em todas as classes sociais (inclusive por pessoas ilustres da sociedade, que difundem o discurso da repressão total), movimenta uma estrutura produtiva gigantesca. Para atender a grande demanda consumidora essa organização produtiva e criminosa sub-emprega muitos trabalhadores num processo de mão-de-obra semi-escrava e também infantil, nas lavouras e nos pontos de venda. Muitas das chamadas “bocas”, armadas até os dentes, não reconhecem e não são reconhecidas na dinâmica de livre concorrência do mercador liberal, e são também pontos de disputas homéricas. As incalculáveis cifras do comércio de drogas ilícitas correm o mundo para serem lavadas e, do mesmo modo, influem sobre a indústria bélica mundial, que vende armas para bandidos e mocinhos, promovendo verdadeiras “guerras civis não declaradas”.



De outro lado às indústrias do álcool, do tabaco e farmacêutica, que constituem trustes riquíssimos, também englobam um vultoso aparato publicitário e corrompem o Estado. Nas drogas lícitas, como o tabaco, incidem pesados impostos, que não são coerentemente repassados para os setores a que são propostos, como por exemplo, o sistema público de saúde. Uma sociedade capitalista já doente pelo excesso ou pela exceção, pela exploração do trabalho e pela coerção a padrões de beleza e saúde, tende sim a se auto-medicar e a se drogar. Mas o perverso nesse processo é que os cartéis farmacêuticos e as organizações das drogas lícitas ainda ampliam e sofisticam o discurso da doença. Sugerem que se beba álcool, mas que se cuide, e não abuse, não tenha ressaca, não se deprima, pois o trabalho o espera. Caso tenhamos ressacas ou depressões, ou queiramos emagrecer, as farmácias estão lotadas de novidades. O consumo de álcool, excessivamente sugerido pela propaganda “das boas”, engendra a violência doméstica, especificamente a agressão física à milhões de mulheres. O álcool também promove o genocídio diário ligado às mortes por brigas em bares e acidentes fatais no trânsito e nas rodovias. As últimas estatísticas de mortes no trânsito, só no Brasil, chegam a 300 mil por ano, e mais da metade desse número são de jovens, até os 28 anos de idade.



Com base nos parágrafos acima, sobre as estruturas do mercado de drogas, lançamos algumas questões para reflexão: Quem, ou o que promove a violência hoje? Será que as drogas ilícitas não proporcionam mais lucros assim, proibidas, do que se fossem lícitas, fiscalizadas e taxadas? E se o Estado começasse a discutir uma possível política de drogas, revendo a proibição? Como ficaria a situação da indústria bélica? Como se comportariam as empreiteiras que constroem presídios superfaturados para abrigar os contingentes do narcotráfico? O que aconteceria com estrutura de lavagem do dinheiro sujo do tráfico de drogas? As industriais farmacêuticas, de tabaco e de álcool também não são inocentes. Seus lobbies e esquemas de propinas constituem um lodo de corrupção e de assédio moral infiltrado no Estado.



Portanto, se fizermos o exercício de ampliar os sentidos do termo violência, especialmente no mundo contemporâneo, veremos que o mesmo tem relações enraizadas e ramificadas no interior do sistema capitalista. Muito se ganha e se acumula com a violência. Ela constitui contradição inerente desse sistema e tende a se explicitar mais, com a mesma violência com que o capitalismo se impõe, e vem se impondo ao longo da história, desde os séculos XVI e XVIII até hoje, com a expropriação violenta dos trabalhadores do campo e com os criminosos métodos de divisão e exploração do trabalho.





* Publicado originalmente no Mural do Observatório do Mundo Contemporâneo da Unioeste/PR Campus de Marechal Candido Rondon.





Fábio Ruela de Oliveira (Professor do Colegiado de História da Unioeste de Marechal Candido Rondon e doutorando em História na UFF).

2 comentários:

Anônimo disse...

Quando um bando de jovens de classe-média alta é preso por tráfico de drogas, os pequenos apresentadores questionam:

"O que leva jovens de classe média alta a cometer tais desvios?" ... falam como se uma conduta de retidão moral e ética fosse inerente a filhos de classes mais abastadas e ilustradas.

Penso que para grande parte dos trabalhadores da Imprensa Brasileira, falte o que é fundamento das atividades intelectuais humanas: a inteligência, que pressupõe discernimento.

Anônimo disse...

Clap, clap, clap!

Excelente post! Mto boas as reflexoes acerca da violencia!

Ele me fez lembrar de algumas pequenas questoes q eu gostaria de expor.

Primeiro, é mto interessante como ninguem, mas ninguem se pergunta acerca do significado social dado à um conteudo violento. Nesse sentido, podemos nos indagar, como vc bem fez: "O q é a violencia?"

Violencia poderia ser definido em um sentido bem basico como sendo qq ataque à um individuo contra a sua propria vontade. Porem, é interessante observarmos q nesse sentido, porem, vemos q certas "violencias" nao sao violencia num outro contexto cultural, sendo tomado como a expressao mais pura da religiao ou da cultura, algo normal e cotidiano. O q sao as clitoridectodomia praticadas em algumas regioes africanas ate entao. Ou entao as praticas de ritos de passagens comuns entre povos tribais, ou ainda os sacrificios realizados antigamente, onde as proprias vitimas se sentiam honrados por serem o sacrificado. Tais praticas, qnd lidas ou mencionadas, revoltam imediatamente qq pessoas em um pais "civilizado", pois tais praticas exibiriam a "barbarie humana". Entao podemos nos perguntar mais uma vez, o q é violencia?

Passando da dicotomia violencia-nao violencia, encontramos uma outra, a saber, a da violencia legitimada-nao legitimada. Tomemos a ideia q dar um tiro na cabeca de alguem seria algo violento. O q legitima um tiro na cabeca ser valido, qnd o Estado da? Claro, existem mtas teorias e questoes aqui. Elas podem no fim justificar tais acoes (e realmente justificam), porem, ao nos perguntarmos acerca do q legitima tal violencia, ja estaremos dando um passo a frente, alem do maniqueismo mto bem criticado aqui.

O q difere de praticas governamentais e praticas sociais acerca da contencao da violencia atraves do proprio uso da violencia das praticas de infibulacao? Se algo difere, bem, seria somente o fato de q as praticas de contencao sao praticas reconhecidas como de violencia, e mesmo assim, mais q legitimadas, sao exigidas por inumeros setores sociais. Tornando, por um lado, tal escolha ainda mais cruel q a de arrancar praticamente a vagina de uma jovem, pois esta, enqnt é visto como algo necessario e cultural, o outro é quase como a aceitacao e exigencia do exterminio.

Um Estado nao sobrevive sem a forca estatal, sem o monopolio da forca. A criminalidade pode, e num certo sentido, deve ter respeito pela forca estatal. Porem, entre a escolha do deixar de ajudar, e ignorar a possibilidade de construir uma base democratica q atinge nao somente no simples voto, mas sim em tds as camadas possiveis da sociedade, e qnd digo por camadas, digo de divisao de poder na esfera social, cultural, economia e politica - alias, definir democracia por poder votar no representante é algo mto errado.

A simples politica do confinamento e esquecimento somente reproduz maiores problemas e com isso uma maior violencia.

Nisso...vc é culpado, eu sou culpado, tds nos somos culpados!

Mas ainda pode ser feito algo, e a primeira coisa é abrir a mente pra possibilidade de violencia ser algo amplo, como dito nesse post.

Mais uma vez, otimo post!

Abs!