quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Nem um minuto de silêncio



Mãos Dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade





No dia 21 de outubro, distante do show midiático das execuções sumárias tornadas espetáculos, um trabalhador brasileiro perdeu a sua vida pelas mãos de uma milícia a serviço da multinacional suíça Syngenta Seeds. Valmir Mota de Oliveira, o Keno, foi morto com dois tiros a queima roupa por pistoleiros fortemente armados que buscavam, assim, intimidar os camponeses e camponesas que estavam no Acampamento Terra Livre. Keno tinha 34 anos, deixou a esposa Íris e 3 filhos, meninos com 13, 9 e 7 anos que crescerão sem a presença de seu pai. Os que conviveram com Keno o descrevem como uma pessoal calma, que se dava bem com todos. Um militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que era muito querido pelos seus companheiros e companheiras e que desempenhava um papel importante na organização das suas lutas do Paraná. Nas poucas horas livres que costumam restar aos que dedicam à vida às causas coletivas, Keno gostava de ficar com a mulher e os filhos, fontes de afetividade necessárias aos enfrentamentos duros daqueles que constroem na luta, cotidianamente, um outro mundo, mais justo e igualitário.

Além de tirarem a vida de Keno, os milicianos a serviço da Syngenta feriram gravemente Couto Viera, Jonas Gomes de Queiroz, Domingos Barretos, Izabel Nascimento de Souza e Hudson Cardin. Izabel perdeu a visão de um olho com o tiro que levou. Trata-se de um crime anunciado, pois ameaças de morte já haviam sido denunciadas e os seguranças da empresa, por várias vezes, entraram no Assentamento Olga Benário, que fica ao lado da fazenda experimental, atirando a esmo e intimidando as famílias que ali residem.

As famílias de camponeses que lutavam para permanecer na área não estavam somente fazendo valer seu legítimo direito à terra. A transnacional Syngenta é uma empresa fora-da-lei que, em 2006, estava cultivando experimentos de sementes transgênicas dentro da zona de amortecimento do Parque Nacional do Iguaçu, o que era proibido pela Lei de Biossegurança. Esses experimentos deveriam respeitar uma distância de 10 km de parques e unidades de conservação, mas distavam apenas 6 km do Parque Nacional. A empresa chegou a ser multada em 1 milhão de reais pelo IBAMA, mas não pagou a dívida. Segundo a Via Campesina e o MST, a Syngenta Seeds utiliza a reserva da Mata Atlântica, contaminando a biodiversidade e produzindo poluentes que agridem o ambiente e os seres humanos.

Esse caso da Syngenta é generalizável para o agronegócio. Desrespeito ao meio ambiente e às leis trabalhistas, superexploração da natureza e dos seres humanos que são comuns a cultivos como os do eucalipto, com seus desertos verdes, e da cana-de-açúcar voltado para produção de etanol, que vem produzindo mortes por exaustão em trabalhadores que são obrigados a cortarem com seus facões inacreditáveis 15 toneladas de cana por dia. A alardeada modernidade do agronegócio também significa venenos que chegam sem controle à mesa dos que vivem na cidade, agrotóxicos, hormônios e antibióticos que permitem que o crescimento de um frango, do nascimento ao abate, demore apenas 38 dias, transgênicos que fazem mal à saúde, mas que são benéficos ao lucro.

Portanto, o assassinato de Keno é somente a face mais explícita e brutal de um modelo econômico criminoso. Garantir taxas elevadas de remuneração do capital requer eliminar aqueles que sobram, vide extermínio nas favelas e periferias, bem como aqueles que se organizam e disputam, ainda que com armas desiguais, projetos distintos de sociedade.
Para esses que tombam defendendo a vida humana e a natureza, a mídia gorda dedica todo seu silêncio. São apenas números distantes, gente sem voz, representantes de um Brasil que não se vê nas telas da Globo. A criminalização de que o MST é vítima, traduzida no termo invasão para descrever ocupações de terras improdutivas ou de cultivos ilegais, agressores do meio ambiente, demonstra o compromisso com um projeto insustentável em termos ambientais e incompatível com a felicidade dos seres humanos.

Os militantes do MST, e todos os que compreendem o papel fundamental dessa organização hoje para a construção de uma sociedade mais democrática e de um projeto de fato popular para este país, denunciam esse silêncio cúmplice do crime. Mas também se recusam a conter sua indignação no minuto de silêncio burguesmente concedido aos que são vitimados por tragédias. Essa indignação se torna semente a fertilizar o chão da esperança que cultiva, no presente, as possibilidades históricas de um outro mundo:



A cada companheiro tombado,
nem um minuto de silêncio
Mas toda uma vida de luta!


Adriana Facina (Observatório da Indústria Cultural/UFF)


Publicado originalmente em http://www.fazendomedia.com/, em 29/10/2007


Um comentário:

Raoni disse...

vcs ou o MST ja procuraram o Ministerio Publico?