quarta-feira, 3 de outubro de 2007

De chorar e sonhar.Melodrama mexicano no exemplo da novela A usurpadora.


"O mexicano não que ser nem índio, nem espanhol. Tampouco
quer descender deles. E não se afirma nem como mestiço, senão
como uma abstração: é um homem. Torna a ser um filho do
nada. Ele começa com ele mesmo."
Octavio Paz, O Labirinto da solidão - 1950

Novelas mexicanas têm sido sinônimo de incompetência técnica e clichês mal combinados. Entre os críticos e intelectuais, mesmo as tramas nacionais, que também não gozam de muito respeito enquanto forma artística, são tidas como superiores às tramas mexicanas, já que teriam maior qualidade técnica (sobretudo no aspecto da atuação) e retratariam a realidade de forma mais complexa.

É imprescindível, no entanto, compreender a razão pela qual um gênero tido pela crítica como tão mal feito é capaz de atrair audiência vastíssima, em dezenas de países, e levado às lágrimas tantos brasileiros, que escolhem diariamente o choro dublado para ocupar suas horas em casa. E essa audiência, segundo o SBT, vem primordialmente dos públicos C e D.

Para compreender esse fenômeno, analisaremos, a novela A Usurpadora, exibida pela quarta vez, atualmente, no horário de 17h no SBT, e que figura ao lado de Maria do Bairro e Rebelde, como um dos produtos de maior rendimento da Televisa, em audiência e cifras. No Brasil, a novela estreou em 1999, um ano após a exibição no México, e rendeu índices memoráveis de audiência, incomodando seriamente o tradicional Jornal Nacional da concorrente Globo, com uma média de IBOPE de 19,5 pontos e picos de até 30 pontos em seus capítulos finais. A comoção em torno das gêmeas foi tamanha, que o cd Amor de Verdade, do cantor Paulo Ricardo, que continha a regravação da música Sonho lindo, de Roberto Carlos, tema de abertura da novela no Brasil, ultrapassou a marca de 100 mil cópias vendidas 1.

A usurpadora não foge dos clichês do melodrama. Trata da história de gêmeas idênticas na aparência, porém completamente diferentes na índole. Separadas ao nascer, Paola e Paulina não sabiam da existência uma da outra até se encontrarem em um clube chique, onde Paola se diverte e Paulina trabalha. Paola, que é a vilã da novela, tornou-se uma mulher tão rica quanto fútil, e, ao notar a semelhança com Paulina, moça trabalhadora e honesta, forja um flagrante de roubo e obriga a pobre moça a ocupar seu lugar por um ano junto à família de seu rico (e belo) marido, Carlos Daniel Bracho, para não perder sua fortuna enquanto tira “férias” e viaja pelo mundo com seus amantes. Ao assumir o lugar da irmã, no entanto, Paulina inicia uma série de mudanças na família, que estava desestruturada com as maldades de Paola, e apesar de sofrer as acusações e o desprezo de todos (que pensam ainda ser sua gêmea má), age para o bem de todos, dando atenção aos filhos de Carlos Daniel, cuidando brilhantemente dos negócios da família (de faxineira de banheiro ela se torna uma grande empresária), e esforçando-se para que reine a harmonia na mansão dos Bracho. Apaixonada por Carlos Daniel, Paulina encarna o drama de um amor impossível, pois não pode revelar-lhe sua verdadeira identidade. Para piorar, Carlos Daniel, que não entende a mudança repentina no comportamento da esposa, a pressiona para “cumprir sua obrigações” (sic) e diante de suas recusas, recorre a Leda, mulher que sempre ambicionou casar-se com Carlos Daniel e vivia a planejar maneiras de sabotar seu casamento com Paola. Essa resignação moral de Paulina, que se mantém virgem até o final da novela, quando se casará com Carlos Daniel ( e deduz-se que finalmente...) é contrastante com o comportamento "promíscuo" de Paola, que durante a novela terá mais de sete amantes, e não exita em flertar com qualquer um de quem possa tirar algum proveito. A diferença fica clara, além de tudo, pela imagem das duas. Paola é uma mulher extravagante que usa roupas sensuais e caras (além do batom vermelho que marca a personagem) enquanto Paulina é discreta e formal, com taillers cor-de-rosa e uma maquiagem marcada, porém leve. Parece que uma mulher correta, preocupada com sua família, não deve ser amante dos decotes e cílios postiços.

Um roteiro como esse não é incidental. Sequer é fruto de uma falta de criatividade crônica entre os mexicanos. A Televisa cuida cautelosamente de cada detalhe de suas novelas, comprando apenas roteiros já fechados (não se aceita uma entrega gradual de capítulos) e com potencial de aceitação relevante. Sendo o maior monopólio de telecomunicações em língua espanhola, a Televisa não tem compromissos apenas com seus lucros. Como a própria empresa divulga em sua página na Internet, sua produção está comprometida com um serviço público, segundo uma certa visão do que seria o bem estar do país e a própria identidade mexicana:

“En Televisa reconocemos que somos concesionarios de um activo de los mexicanos, por lo tanto, tenemos la responsabilidad de apoyar y promover las causas encaminadas al bienestar del pais. Em los mercados internacionales somos los embajadores de las costumbres mexicanas, y Del idioma español, por lo que nuestras acciones debrán representar este compromiso.”2

Falta, apenas, dizer que não existe um consenso absoluto sobre o que é o “bem-estar do país” e a identidade mexicana ou latina.

Profundamente comprometida com o PRI, Partido Revolucionário Institucional, que esteve no poder por 50 anos no México, deixando o governo apenas no ano 2000, a Televisa já teve inclusive um ex-presidente do país como diretor. Suas ligações com o governo lhe asseguraram vantagens gigantescas nas concessões de TV, e facilitaram o estabelecimento de um império que inclui mais da metade das rádios mexicanas, gravadoras, quatro canais abertos, a única TV a cabo mexicana, uma TV internacional (Telemundo) que transmite programação em língua espanhola para diversos países, além dos portais e provedores de internet mais utilizados no México. Sua influência sobre o governo, inclusive, parece não ter cessado com a saída do PRI, já que foi aprovada recentemente a lei de telecomunicações Mexicana (apelidada não gratuitamente de “lei Televisa”) que estabelece a renovação automática por mais 20 anos das concessões de TV para as empresas que já as possuem, exceto em caso de recusa destas. Além disso, qualquer envolvimento de populações indígenas com os meios de comunicação, seja para administração, veiculação ou produção, fica expressamente proibido, sob argumento de que se estaria preservando a cultura destes. Este fato não é irrelevante, já que na década de 1990 houve um crescimento significativo de movimentos anticapitalistas entre essas populações, que entre outras coisas, utilizam fortemente meios de comunicação alternativos, como rádios locais, sites e blogs na Internet e jornais próprios, denunciando a Televisa como manipuladora de informações e produtora de conteúdos “alienantes”.

É preciso, portanto, perceber que o formato de A Usurpadora, assim como todas as novelas mexicanas, em geral, não é fruto de uma incapacidade técnica ou falta de talento, mas é sim, resultado de uma opção clara e consciente. E essa opção possui dois sentidos: produzir com maior rapidez, menor custo e conseguir os maiores rendimentos, por um lado, e, por outro, gerar conteúdos que alcancem um público cada vez maior, transmitindo os valores de mundo que a direção da empresa crê serem “saudáveis” para a família mexicana.

Os famosos pontos eletrônicos, por exemplo, que prejudicam a naturalidade da atuação, são extremamente úteis, permitindo que os atores estejam em cena durante quase 100% de sua jornada de trabalho (já que não precisam decorar os textos), e possibilitando que o diretor faça as alterações que acreditar necessárias, mesmo na hora da gravação (o que dificulta improvisos e facilita a censura). Além do mais, esse tipo de atuação mais exagerada, com tons de vozes exaltados, permite que ao telespectador acompanhar a trama mesmo que esteja fazendo outras coisas (como afazeres domésticos, por exemplo). É por esse motivo, também, que a trilha sonora é a mais simples possível, funcionando como uma marcação de acontecimentos que o telespectador já espera que ocorram. Isso fica bem claro com a presença de uma trilha somente para a personagem Paola Bracho. Invariavelmente, todas as vezes que Paola surge em cena vem acompanhada do mesmo trecho instrumental específico de aproximadamente 30 segundos, que se repete, caso a cena seja mais longa.

Outro aspecto importante seria a presença de personagens “sedentários”, que aparecem com os mesmo cortes de câmera, em ambientes fechados (em geral em seus sofás, na sala de jantar e em seus escritórios), que permite a familiarização com os ambientes e situações e economiza custos altos com takes de externas, que são reservados para algumas novelas especificamente produzidas para mostrar lugares turísticos do México, e ganhar uma certa audiência do interior, e não são tão bem aceitas no mercado externo.

Além disso, não podemos esquecer o papel primordial do discurso dessas novelas. Com falas simples e mesmo “didáticas” (é possível, muitas vezes escutar o pensamento de alguns personagens), o público tem a sua frente um mundo dividido entre bons e maus, e onde a vitória é garantida para os que persistem na bondade e na moral dominante (e caberia dizer, cristã), mesmo que se passe por um longo sofrimento antes disso. E essa vitória, além de tudo, garantirá um final perfeito, em que nenhum mal poderá tocar a vida dos mocinhos, para sempre. A personagem Paulina, por exemplo, resistirá firmemente aos sofrimentos passados na mansão dos Bracho com a firme convicção de sua inocência e dignidade. Apesar das amarguras, ajudará mesmo os que lhe fazem mal, como é o caso de Stephanie Bracho, irmã de Carlos Daniel, que odeia Paola por esta ter seduzido seu marido Willy. Apesar do ódio de Stephanie, a sofrida usurpadora fará de tudo para ajudar o casamento dos dois e chegará mesmo a doar sangue para o filho de Willy e Stephanie, quando este fica entre a vida e a morte.

Para a Televisa, portanto, os bons mexicanos devem sempre “fazer o bem sem olhar a quem”. Resignar-se diante das situações ruins e “dar a outra face”.

A relação entre classes sociais distintas também é uma questão essencial nessas produções. Muito além do clichê do “mexican dream”, de enriquecimento acidental e repentino de mocinhas pobres, inocentes e honestas, vivido por Paulina, há diversas ocasiões em que a ambição por riquezas materiais ou inconformismo com o lugar social é apresentado como um comportamento moralmente inaceitável. É o caso de duas personagens secundárias: a empregada Lalinha e a operária Viviana. A primeira, ambiciosa, nutre uma admiração profunda pela malvada Paola, e entre fofocas e intrigas vende informações que escuta na mansão, demonstrando enorme falta de caráter. Já a segunda, para alcançar seus objetivos, torna-se promíscua, amante de Willy, o marido de Stephanie, planejando casar-se com este para enriquecer. Ambas serão enganadas em meio a suas armações e terminarão a novela arrependidas de seu comportamento interesseiro.

Como contraste, há os personagens de Moacir e Isabel. Idosos e pobres, eles surgem na novela ao encontrar o filho de Carlos Daniel, Carlinhos, que havia fugido de casa e perdido a memória. Os dois acolhem o menino e cuidam dele como se fosse seu. Ao ser noticiado na imprensa o oferecimento de uma recompensa para quem encontrasse o menino, rejeitarão a idéia de aceitar a fortuna e apesar da ambição da irmã de Isabel, Antônia, que chega a armar uma situação para receber o dinheiro da recompensa sozinha, entregarão o menino à família sem nada aceitar em troca, apenas por amor a ele.

Além disso, as relações com os empregados da fábrica Bracho cumprem um papel importantíssimo durante a novela, humanizando os patrões, e dividindo os personagens não segundo sua classe, mas segundo sua índole.

É o caso do episódio 50, quando Willy, tencionando prejudicar Paulina (que já se sabe ser uma usurpadora) e Leandro (noivo de Viviana, com quem Willy tem um caso, e supervisor da fábrica), insufla os operários a iniciarem uma greve por aumentos, já que a fábrica teria recebido uma grande quantia emprestada e não teria repassado para os salários. Diante do problema, Stephanie, Leda e Willy (todos os três tidos como personagens maus) defendem que se contrate outro supervisor (a sugestão é de que seja Willy) e se aumente o salário dos operários. Paulina, no entanto, rejeita a idéia, que seria absurda já que levaria a fábrica a perder dinheiro, e defende a idéia de falar com os operários, pois esses “são sensatos e sabem quando lhes falamos a verdade”. Acompanhada apenas de Leandro, Paulina fala de cima de um degrau aos operários sobre os custos que o aumento causaria a fábrica. Os operários reagem mal, e Carlos Daniel é chamado por sua secretária para acompanhar a negociação, já que “poderiam faltar com o respeito à Senhora”. No momento em que chega, no entanto, Paulina está dominando a situação.Firme, ela desce do degrau (o que demonstra sua humildade, passa a idéia de que é igual aos operários) e fala cara a cara com os grevistas, dizendo que “não vêem que se a fábrica tem problemas, todos nós saímos perdendo? Vocês estão tirando o pão de suas próprias casas. Não dêem ouvidos a agitadores que somente querem nos dividir”. Com essa argumentação os operários mudam automaticamente de idéia, voltam a trabalhar. E Carlos Daniel, encantado, assume estar “apaixonado pela usurpadora”. É um mundo, portanto, que não seria dividido em classes, mas em bons e maus. Operário e patrões estão unidos por um mesmo objetivo, que beneficiará a todos, e os “agitadores”, maus, pensam apenas em seu próprio interesse, são egoístas e desonestos.

Relevante o fato de que esse capítulo foi ao ar no México no ano de 1998, quando as insatisfações com o governo de Ernesto Zedillo começavam a desembocar em manifestações e greves. Era hora de dizer aos mexicanos que todo o México deveria estar unido em um só ideal. Apenas os maus e egoístas se esforçavam por sabotar um governo que seria para o bem de todos.

Por fim, não podemos deixar de lembrar da enorme distância entre o padrão estético das telenovelas e a realidade da população mexicana, que carrega fortes traços indígenas em suas feições. As atrizes são, em sua enorme maioria, brancas, magras e de traços europeus, segundo o padrão hollywoodiano. Isso decorre de política deliberada da emissora que, para alcançar os mercados externos, conta, inclusive, com um time de atores estrangeiros, que diversificariam e “universalizariam” os personagens. E, mais ainda, os atores aparecem o tempo inteiro impecáveis, cabelos perfeitos (e em geral, lisos) e, no caso das atrizes, com uma pesada maquiagem, não importa a hora do dia ou da noite. Isso porque a novela é uma mercadoria extremamente complexa, e não vende apenas a si mesma, mas também sua trilha sonora, seus patrocinadores, sua “moda”... enfim, inúmeros produtos aos quais a novela agrega valor, e que rendem boas cifras à Televisa.

Não podemos supor, no entanto, que o público não saiba a diferença entre esse mundo e a realidade em que vive. Entrevistando telespectadores e fãs brasileiros da novela, obtivemos respostas significativas sobre as razões pelas quais assistiam a uma trama como A Usurpadora. Respostas que, aliás, não diferem tanto das obtidas pelo Professor Jorge González em Pesquisa realizada na cidade mexicana de Colima em 1985, sobre as razões pelas quais as pessoas assistiam as produções da Televisa. Como entre os mexicanos, os brasileiros que entrevistamos invariavelmente apontam para uma percepção de que a trama não procura retratar a realidade e seguiria os clichês usuais de tantas outras novelas, e afirmam que é precisamente por este motivo que a assistiam.

“É uma novela que dá pra ver com a família toda, porque não fica passando sexo e essas maldades que a Globo passa. Eu sei que os bons vão vencer”(Denise, 39 anos)

“Porque se eu quisesse assistir a realidade ia assistir um jornal. Quero ver novela para ver as coisas diferentes mesmo, o bem vencendo o mal. Vejo novela pra sonhar.” (Karine, 20 anos).

Diante da dura realidade do capitalismo periférico, é preciso sonhar com algo completamente diverso dessa mesma realidade. Sonhos com lágrimas de amor, que nos distraiam das lágrimas de fome. Sonhos com uma dor diferente da vivida cotidianamente, na procura por emprego, no dinheiro contado, nas relações desumanizadas. Sonhos de um final feliz.
Afinal, a crueza do “mundo de verdade” talvez tenha permitido a essas novelas chegar à tal universalidade que Octavio Paz apontava com o projeto de identidade mexicano. Por aqui, precisamos consumir os mesmos sonhos tão dramaticamente fantasiosos. E, assim, como lá, eles se voltam contra nós.

Notas:
1-http://www.pauloricardoonline.hpg.ig.com.br/parepor.htm
2-http://www.televisa.com/
Referências na web:
http://www.esmas.com/
http://www.alvarocueva.com/
MOTTA, Fernanda G. Muito além da Maquiagem carregada. São Paulo 2006. FAESA
A cena da greve na fábrica aparece aos 2 min e 11 seg: http://www.youtube.com/watch?v=PP6epDWqJgo
Raquel Sant'Ana (UFF/Observatório da Indústria Cultural)

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