Molly Bloom está insone na cama, ao lado do marido. O cenário é uma cama, apenas uma cama. E a iluminação amarela - do início ao fim, só havendo uma intensificação no tom do amarelo no auge da memória de Molly Bloom, que se finaliza com o mítico “sim” do monólogo de Molly.
Sábado fomos ao “Solar de Botafogo: Centro Cultural” assistir à peça Diálogos Com Molly Bloom, de José Sanchis Sinisterra, que conta, já na sua concepção, com alguns pontos curiosos. O título – Diálogos – parece estranho, já que o texto é na verdade um monólogo. Prendendo-se à preparação da produção e à gênese do próprio texto, contudo, o título se faz revelador: Malu Galli (que interpreta Molly Bloom) é dirigida por cinco diretores, ao mesmo tempo em que o texto é claramente uma alusão ao mítico romance modernista Ulysses, do irlandês James Joyce.
Andréa Beltrão, Christiane Jatahy, Cristina Moura, Gilberto Gawronski e José Sanchis Sinisterra (que também assina o texto) dirigiram, um sucedendo os trabalhos feitos pelo diretor anterior, a atriz Malu Galli. O resultado final não é de forma alguma um campo cheio de rígidas divisórias: o que se tem é, e então entra a expressão “diálogos” no título, o diálogo entre cada diretor, entre a atriz e o diretor, entre a atriz e o público. Seguindo essa mesma lógica chega-se, afinal, à própria concepção do texto de José Sanchis Sinisterra: Molly Bloom integra os personagens do romance Ulysses. Um dos romances pioneiros da técnica do fluxo de consciência, Ulysses inaugura, juntamente com Em Busca Do Tempo Perdido, do francês Marcel Proust, as inovações lingüísticas que ganhariam espaço na literatura do século XX.
Um fato curioso, aliás, surge da própria origem de Ulysses: o romance é um diálogo claro, explícito, com a Odisséia de Homero – uma paródia seguindo o gosto modernista. Duas figuras conduzem, através de suas ações, o fio narrativo: Stephen Dedalus, jovem escritor que já aparecera em Retrato Do Artista Quando Jovem, em que James Joyce experimentara o fluxo de consciência, e o Sr. Bloom, casado com Molly Bloom, cantora que, afinal, aparece como protagonista da nossa peça.
O diálogo entre Ulysses e a Odisséia e o diálogo entre Diálogos Com Molly Bloom e Ulysses devem ser muito bem diferenciados: no primeiro tem-se, por assim dizer, uma criação que se apropria da estrutura narrativa, para então refazer, por meio de alusões, experimentações lingüísticas, criação de espaços, personagens originais e esféricas, uma troca dinâmica entre duas obras de arte, enquanto que, no segundo, José Sanchis Sinisterra se apropria completamente do monólogo de Molly Bloom (monólogo notável na literatura e um dos episódios fundamentais dentro de Ulysses) para montar, de maneira quase artificial, o texto dramático.
Um ponto, todavia, merece destaque: a peça não faz a exigência de que se conheça Ulysses, ainda que o não conhecimento da obra pudesse, a princípio, reduzir o texto a um monólogo que cai por vezes num ponto de vista piegas sobre o sexo oposto e o casamento. Tal ponto de vista, entretanto, se desfaz através das constantes contradições de Molly Blom, seus conflitos noturnos, constituindo permanentemente uma estrutura de tese, antítese e síntese, em que a personagem vive uma insônia atormentada, pensante e produtiva, indo do amor sexual animalesco ao êxtase da realização do sentimento amoroso quase romântico.
A peça é um espetáculo muito bem montado e encenado que, como já tentamos explicitar acima, apesar de inspirada em romance de James Joyce não necessita de conhecimentos prévios para ser apreendida e apreciada, já que abarca questões referentes a todos os seres humanos, seus sentimentos, suas dúvidas, suas emoções.
Uma questão todavia nos chamou a atenção: o próprio espaço no qual a peça foi exibida - “Solar de Botafogo: Centro Cultural”. O local é um casarão do início do século XX, cujo interior foi totalmente modificado para o mais moderno estilo do século XXI. Possui uma pequena área de espera e um bar, onde um telão exibe vídeos de cantores de nossa Música Popular Brasileira. A peça em si, acompanhada da atmosfera do ambiente do “Solar de Botafogo”, levou-nos inevitavelmente a pensar sobre o papel da arte em nossa sociedade - pois é bem verdade que a peça trata de questões que perpassam a vida de todos os seres humanos e o local se propõe a ser um centro difusor de cultura, mas exatamente aí não se consegue perceber: difundir essa cultura para quem? O local é um bom exemplo para contradizer aqueles que vêem a cultura como um campo autônomo da sociedade, pois nele ficam claras as interligações existentes entre a cultura e a economia.
Os ingressos para a peça custam R$ 30,00, o que já limita (e muito) o seu público. O fato se faz ainda mais curioso ao se perceber que essa peça, exibida nesse espaço elitista, de difícil acesso, foi selecionada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (universidade pública que supostamente estaria diretamente relacionada à inclusão social e a projetos de livre cultura) para os candidatos ao curso de Direção Teatral no seu concurso de vestibular.
No site do centro cultural[1], cujos produtores associados são os atores Claudia Lira e Leonardo Franco, este faz a seguinte declaração:
“Sempre desejei ter domínio sobre minha carreira. Ser responsável pelo produto cultural. Acredito no ator-empresário, acredito nas pesquisas de grupo, acredito no teatro como força transformadora, com uma finalidade social e educacional. E acredito que, com as pessoas certas nos lugares certos, podemos ter uma política cultural consistente e responsável. O povo não quer só comida. E o artista precisa de trabalho e incentivo. O cidadão é responsável, o Estado é responsável, todos devem fazer a sua parte. Acredito que, também no Brasil, se possa viver de arte.”
Ao depararmos-nos com esta declaração, logo no início do site, podemos até acreditar nas finalidades sociais deste empreendimento. Porém, não é necessário muito esforço para percebermos as verdadeiras intenções do “Solar de Botafogo”, no próprio site temos:
“Botafogo além de toda a sua importância histórica, é, hoje, a região administrativa que mais cresce na zona sul e uma das 4 mais ricas da cidade. (...)
Este enorme público potencial, tem para seu lazer 19 cinemas, uma casa de shows, 3 shoppings, 7 clubes, 19 praças, uma praia, mas não possui nenhum Centro Cultural, neste segmento inexplorado no bairro, é que vamos atuar, oferecendo divertimento diferenciado e de qualidade.”
E declara:
“Nosso público alvo é muito amplo (classes A, B e C / Todas as idades / Ambos os sexos).”
Os dois últimos trechos mostram que as reais intenções em se criar o centro cultural não são desprovidas de interesses econômicos, pelo contrário: estão totalmente inseridas na lógica de mercado - pretendendo abarcar um nicho de mercado inexplorado na região – e têm público alvo específico. O local, ao invés de difundir a cultura, apenas reafirma a lógica de nossa sociedade excludente, separando os que podem e os que não podem ter acesso a determinados conhecimentos, os quais passam a simbolizar poder e distinção social.
A peça, que a princípio não necessita de grandes investimentos financeiros, visto que seu cenário constitui-se em apenas uma cama e tem como elenco apenas dois atores – sendo que o ator que faz o papel de marido de Molly Bloom tem a única função de permanecer durante todo o espetáculo dormindo -, e trata de questões referentes ao gênero humano, passa a falar para um público específico. Desse modo, Molly Bloom apenas dialogará com seus diretores e com um público específico: aqueles que possuem recursos financeiros para dialogar com ela. Para os que não possuem, Molly Bloom executará apenas um monólogo.
Adriana Mattos de Oliveira (UFF/Observatório da Indústria Cultural)
Thiago Mattos de Oliveira (pré-vestibulando)
Adriana Mattos de Oliveira (UFF/Observatório da Indústria Cultural)
Thiago Mattos de Oliveira (pré-vestibulando)
Um comentário:
Aprendi muito
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