quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Mídia e democracia


Liberdade de expressão e participação política - Debates em torno da concessão pública na Venezuela a partir dos comentários de leitores de O Globo Online


Na noite do dia 27 de maio de 2007, a maior e mais antiga emissora privada de TV venezuelana, Rádio Caracas Televisión (RCTV), deixou de transmitir sua programação por não ter renovada pelo governo a sua concessão pública de sinal televisivo. Esta mesma emissora sempre se posicionou como oposição ao governo de Hugo Chávez. O presidente venezuelano não renovou sua concessão sob a acusação de programação inapropriada, de propagar “valores negativos”, e desrespeitar “as muitas manifestações da vida social”. Mas fora essa mesma emissora que, em 2002, apoiara e estimulara um golpe de Estado contra o mesmo presidente, manipulando as informações e imagens sobre as manifestações populares que estavam sendo feitas enquanto orquestravam o golpe, divulgando durante esse período a notícia de que Chávez havia renunciado ao cargo.


Definir democracia é uma tarefa imprecisa, pois estaremos sempre falando sobre um conceito. Sendo assim, pode assumir variadas nuances. Tomando o caso venezuelano como eixo de análise, trabalharemos com idéia de democracia associada à liberdade de expressão e acesso à informação, além da participação política do público em espaços reservados à sua atuação. Através do episódio da não renovação da concessão pública do canal televisivo da RCTV, abordaremos algumas outras questões pertinentes, como representatividade política, não necessariamente institucional, como é o caso do discurso de muitos meios de comunicação que atribuem a si uma responsabilidade social em nome de sua audiência.


Os meios de comunicação de massa alcançaram, ao longo do século XX, especialmente na segunda metade, um grande poder político e social, quando a televisão tornou-se o principal meio de divulgação e recepção. A crescente descrença nos poderes oficiais e abstratos, como o governo, o poder judiciário, entre outras entidades burocráticas, proporcionou um contínuo deslocamento do eixo de legitimidade da cidadania e o da representação política. Os meios de comunicação de massa passaram a ser considerados, e se auto-considerarem, mediadores dos anseios e direitos da sociedade civil. E ao consumirem e se apropriarem de suas produções midiáticas, os sujeitos se consideram cidadãos ativos, onde se percebe uma certa “invisibilidade” da mídia, pois o público comumente ignora o papel de mediadora destas, e por isso, de (re)produção do acontecimento a partir do seu lugar de fala.


Quando atentamos aos comentários do público do O Globo online, procuramos perceber a lógica de recepção e retorno sobre a mídia. Ao analisar a seção de cartas nos jornais impressos, o professor José Luiz Braga (Unisinos) considera as cartas dos leitores como “o espaço em que o leitor e o jornalista podem cotejar perspectivas sobre os acontecimentos sociais, em que os leitores falam com o jornal, no jornal e eventualmente sobre o jornal”. Entretanto, “aquelas esperanças de um debate relevante e significativo não parecem se confirmar”, prossegue. No caso online, esse espaço reservado ao público leitor se torna uma arena de intenso debate. Significativo e relevante, talvez, por algumas características próprias da seção e do meio onde é veiculada a notícia.


N'O Globo online há a seção para comentários gerais sobre o jornal em si, mas o que o que estudaremos será o espaço aberto à veiculação dos comentários, exposto logo após o final de algumas matérias, e as considerações feitas por Braga estão presentes aqui. Ao comentarem nesse espaço, os leitores falam do jornal e das mídias, (problematizando idéia de “invisibilidade” atribuída a eles), com o jornal e com as mídias, e sobre as diversas perspectivas dos acontecimentos sociais. Um dado fundamental que acontece, invariavelmente, nos jornais impressos, e que nos onlines é mais limitado, é o controle editorial do que é publicado. A princípio, a mensagem não passa por qualquer censura. Tão logo seja enviada, já aparece postado o comentário. Ao que um censor pode vir a examinar o conteúdo de cada comentário e então retê-lo. Porém, em casos de notícias que proporcionem muitos posts, essa tarefa fica mais difícil, e vemos então permanecer comentários ofensivos, racistas, homofóbicos, ou mesmo que ataquem a própria empresa de comunicação.


Braga irá ponderar que não é o retorno imediato sobre uma notícia que assegura a efetividade ou relevância ao processo de comunicação, mas sim os usos feitos pelo público dessa interatividade. E no caso da seção que estamos estudando, essa circularidade é mais restrita aos usuários de internet que utilizem esses jornais como fonte de informação. Porém, o fato de que os comentários apareçam logo após uma notícia, e não numa seção específica, é digno de relevância.

Passando, agora, à análise dos comentários sobre a notícia do encerramento da transmissão da RCTV. Discutiremos a maneira como são entendidas e apresentadas as definições de democracia, idéia associada, neste debate, à liberdade de imprensa e acesso à informação.

A notícia mexeu com os ânimos de uma grande quantidade de pessoas, o que gerou um grande número de comentários, mais de 500, no espaço a ele reservado. Por se tratar de um espaço muito mais dinâmico e aberto que a seção de cartas de um jornal impresso, os leitores realmente travavam um debate. Visivelmente polarizado, dividindo-se entre aqueles que apoiavam a medida e os que eram contra, sem muita disparidade no número de defensores e opositores. Por isso, algumas técnicas de interlocução e interpelação são comuns nesse espaço, como dirigir o comentário ao autor de um comentário anterior, muitas vezes recordando sua fala, o que acaba por facilitar a inserção de novos debatedores à discussão. O que geralmente acontece é que o debate é desviado para acusações pessoais, trocando elogios ofensivos. Esse é um dos poucos momentos onde censura às vezes age. Porém, a retirada de algum comentário se dá prontamente apenas quando há “palavrões” na fala de alguém. Mesmo assim, houve um caso nessa notícia que um leitor falou mal da Globo e teve seu comentário censurado, mas seus reclames contra essa atitude foram veiculados. O curioso é que outros tantos leitores postaram ataques contra a Globo, e nem por isso tiveram seus comentários vetados, o que leva a crer que a censura e o veto de algum comentário se dá de maneira esporádica e aleatória. Outra técnica comum, em leitores que querem enfatizar seus comentários, ou fazer panfletagem, é utilizar fontes em caixa alta, ou postar seguidas vezes o mesmo comentário.

O discurso da democracia era uma constante apenas nos comentários contrários à decisão de Chávez. Na própria fala desse grupo de leitores é possível associar essa idéia de democracia à liberdade de expressão, entendida como um direito sagrado e inviolável. Todos os comentários que a defendem não trazem, necessariamente, a idéia de governo representativo, e sim da mídia livre para falar o que quiser e do público e de ter acesso total a qualquer tipo de informação. A questão da isenção e imparcialidade não são trazidas à baila por esse grupo. Muito menos a questão de lugares de fala privilegiados e legitimados, que têm uma abrangência e influência que dificulta o cotejamento de um acontecimento com outras fontes de informação. A idéia de uma mídia manipulada e parcial era levada em consideração apenas para televisões públicas ou estatais.

Defendem que democracia é a lei da audiência. Alguns leitores afirmaram “que Quem deve decidir se uma emissora fica ou vai embora é o mercado. Se o povo gosta, assiste e a emissora fica. Se o povo não gosta, ninguém assiste e vai embora”. Outro leitor comentaria que achava isso “uma falta de respeito com os empresários do ramo e também com os telespectadores”. Por isso que um terceiro leitor dirá que “a não renovação por motivos políticos é censura”, que liberdade de escolha define o que deve ficar ou não. Um leitor, a favor de não renovação, chegou a lembrar a perseguição política, nos anos 1980, feita pela Globo a todos seus empregados brizolistas, demitindo-os logo após. Não se questiona se com essa total liberdade de imprensa poderia ser veiculado programas, em emissoras aberta, que pregassem o racismo, homofobia, o sexismo, materiais pornográficos, entre outros conteúdos perniciosos e preconceituosos para a sociedade. Por isso, qualquer forma de controle midiático é visto como censura, e por isso, pernicioso e ditatorial. Diversas vezes acusaram o governo brasileiro de já estarem tentando medidas semelhantes ao que está sendo feito na Venezuela, como a medida que visava classificar e recomendar etariamente um programa televisivo.

Nas falas dos defensores da medida, o discurso girava em torno da questão de direitos e deveres. Apenas utilizavam a expressão democracia em contra-argumentos para defender que Chávez teria sido eleito democraticamente, e por isso não haveria nenhuma ditadura na Venezuela. Sob a acusação de apoio e incentivo ao golpe que tirou, por algumas horas, o presidente Hugo Chávez do governo, a RCTV teria violado sua função de prestadora de serviços para a sociedade ao atentar contra o governo, crime chamado de lesa-pátria.

Entre os comentários desse grupo interessavam os processos de produção de uma notícia, pois tinham como referência alguns casos escandalosos sobre notícias produzidas na Venezuela. A manipulação feita pela RCTV durante o período que durou o golpe é apenas o maior exemplo. Outros exemplos dados foram o caso que a CNN veiculou um protesto contra a morte de um jornalista no México como sendo um protesto contra o fechamento da RCTV em Caracas; e a notícia de que milhares de pessoas saíram às ruas para protestar contra o fechamento da RCTV, fato que, segundo eles, não existiu porque a agência que distribuiu essa notícia, AFE, aproveitou as imagens da CNN, o que comprovaria a ausência de tal informação em muitos dos grandes jornais europeus que não utilizaram como fonte a AFE. Mesmo o The Guardian, tradicional jornal conservador inglês, e que defendeu a atitude de Chávez (enquanto que, segundo um leitor que dizia residir em Londres, nenhum outro jornal inglês noticiara algo sobre o assunto), é usado como exemplo de que a legalidade de sua medida não era defendida apenas por socialistas ou esquerdistas. Os leitores que se prestavam a analisar o processo de produção das notícias ainda acusaram o Le Monde de prever os acontecimentos, pois os protestos que alegavam terem acontecido no dia 26 de maio, foram noticiados no dia 25 como se tivesse acontecido no dia 24. Lembrando que no Brasil acontecera o mesmo quando denúncias que o próprio denunciante afirmava não poder provar foram publicadas como notícia mesmo assim.

Acontece que nas maiores redes de comunicação do mundo a censura existe. Dizer que a liberdade de imprensa foi atingida é hipocrisia. As grandes empresas midiáticas, mesmo nos países ditos democráticos só publicam o que lhes convém, o que lhes será proveitoso política e economicamente. Por isso vimos a Google ceder à censura do governo chinês por medo de não ter acesso ao grande mercado do país mais populoso do mundo.

Dentre aqueles leitores que apoiaram a decisão de Chávez, é necessário matizar o seu perfil. Poderíamos pensar que são todos socialistas, ou, ao menos, esquerdistas. Mas alguns comentários favoráveis a Chávez, pediam que o mesmo fosse feito aqui no Brasil, onde a televisão, ou melhor, a Globo, “com a ideologia de estar dando diversão gratuita, dissemina costumes e modas e práticas maléficas a sociedade em geral (homossexualismo, palavrões), diz que é católica-cristã, mas o que se vê são aprendizados e práticas de bruxarias em suas novelas”.
Um assunto relevante para esse trabalho, mas que não diz muito sobre o caso da não renovação, é a legitimidade do presidente Hugo Chávez. Questiona-se seu eleitorado por ser predominantemente de pessoas de classes menos abastadas. Afirmou um leitor opositor de Chávez, “que negócio de eleito e reeleito. Aposto que deve ser um monte de mobral postos nessa ridícula situação de serem obrigados a votar num indivíduo claramente desequilibrado.” A situação deles os tornaria massa de manobra de um governo populista. Com o apoio da massa, ignorante e alheia, essas medidas “populistas”, tais como algo semelhante ao bolsa família e políticas sociais, manteriam Chávez no poder, e essa dita massa, inerte. Mais defensores da não renovação argumentavam que a grande causa da miséria é a própria mídia, pois viabiliza a manutenção da elite no poder que são os “representantes legais” da nação.

A verdade é que quase 70% por cento dos venezuelanos são contra o fechamento, mas a maioria citou a perda das novelas favoritas como motivo, e não preocupações com a limitação da liberdade de expressão. O apoio popular foi comprovado pela estatística da popularidade de Chávez, que mesmo após essa medida se manteve em torno dos 60%, segundo a própria Globo.

Portanto, nesse trabalho procuramos, a partir de um estudo de caso, perceber como é definida entre as pessoas a idéia de democracia, e como ela se apresenta nas apropriações de produtos midiáticos e nos seus discursos. Mostrando que as disputas para definir o que é legal, o que são direitos e deveres, ou o que é democracia, revelam outras disputas, como pela legitimação de lugares de fala privilegiados, pela hegemonia, e mesmo pelo direito de significar o que é uma coisa e como posso me apropriar dela.
Bruno Fernando Castro (UFF/Observatório da Indústria Cultural)

Nenhum comentário: