quarta-feira, 3 de outubro de 2007

A periferia nas telas: qual o sentido de Querô?






Jerônimo é filho de Piedade, prostituta do porto de Santos que, ao saber de sua gravidez, entra em desespero Após o parto, Piedade faz do querosene seu último suspiro, bebendo-o em ato de desespero. A criança é criada pela cafetina do bordel e passa a ter como única esperança a sobrevivência. Essa criança não será mais o pequeno Jerônimo, passará a ser, daqui em diante, Querô, lembrança do leito da morte de sua mãe.



Esse é o ponto central do romance Uma Reportagem Maldita – Querô, escrito pelo grande Plínio Marcos no ano de 1976. Essa obra foi ganhadora do prêmio de melhor romance desse ano, concedido pela Associação Paulista dos Críticos de Arte. Plínio Marcos se tornou o representante literato dos excluídos: “deu voz a quem não tem voz", resume Carlos Cortez, diretor do filme que está em cartaz nas telonas.



Plínio Marcos afirmava: “nem Deus olha pelos meus personagens”. É justamente essa realidade que o diretor do longa transpõe para as telas do cinema. O adolescente, lutando para sobreviver, acaba seduzido pela marginalidade e pela possibilidade de ser alguém, já que a vida não lhe deu esta oportunidade, comete pequenos furtos até que é preso e levado para a Febem. Após uma fuga, passa a sonhar com uma vida digna, tenta arrumar trabalho, mas acaba se envolvendo novamente no crime por falta de opção social. O elemento motivador do crime, após a saída do “reformatório”, é a presença de policiais corruptos que o chantageiam, levando Querô novamente ao crime.



Plínio Marcos analisa em sua obra o mundo dos adolescentes marginalizados pela sociedade brasileira, com o objetivo de denunciar essa sociedade que trucida qualquer elemento de esperança. Esse romance foi objeto de trabalho de vários artistas no Brasil e, em 2004, ganhou uma montagem no Teatro de Arena, com a direção de Fransérgio Araújo, ator do Oficina Uzyna Uzona, o grupo do encenador José Celso Martinez. Segundo o diretor da peça: “Plínio abstrai existencialismos, psicologismos. Vai direto ao ponto. Querô representa todas as crianças e adolescentes dos faróis, que são a raiz da transformação da sociedade”.



Em 1977, um ano após o lançamento do livro, foi rodado o filme, com o título Barra Pesada e agora em 2007 ocorreu a nova versão, que tem como ator central Maxwell Nascimento, menino morador da região próxima ao Mercado Municipal de Santos. O menino foi descoberto através das Oficinas Querô, que nasceram do projeto perparatório do filme e hoje contam com auxílio da Unicef para a realização de atividades audiovisuais com jovens da região portuária.



O filme, que já foi premiado no 39º Festival de Brasília de Cinema Brasileiro, 14º Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá e no 17º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, num primeiro momento nos remete a Fernando Ramos da Silva, que interpretou o personagem central de Pixote. O filme de 1981, dirigido por Hector Babenco, trouxe Fernando interepretando um menino de rua que vivia na pobreza e acabou na criminalidade. O fim do ator foi o esquecimento da mídia, ele morreu anos depois em um tiroteio com a Polícia Militar, na favela em que morava, em Diadema (SP). O núcleo central do filme é a brutalidade, a mesma vista em obras que mergulharam no mesmo desencanto da infância.



A produção cinematográfica, segundo Marc Ferro, exerce ação política e social, trata-se de uma obra que exprime uma visão de mundo, que busca agir sobre a sociedade com o intuito de fazê-la refletir sobre si mesma.[1] Querô nos remete a essa questão, a reflexão sobre uma realidade dura, refém de um modelo político-social que fincou raízes no Brasil e transforma a infância em alvode criminalização.



Ocorrem a todo o momento lançamentos de filmes, séries, novelas... cujo aspecto central é a produção de visões sobre a vida nas periferias urbanas. Foi assim em Cidade de Deus, Cidade dos Homens, Antônia, Vidas Opostas e o atual e badalado Tropa de Elite. No caso de Querô existe um agravante em relação a outras produções. Enquanto em Antônia as meninas negras e pobres alcançam um lugar de sucesso por serem honestas, em Querô, por mais que o menino tente, não é possível conseguir uma perspectiva de vida. Há nas telas a transposição da realidade, mas a pergunta que deve ser feita é: qual realidade? A realidade do BOPE no olhar do José Padilha? Do sucesso das moças ordeiras de Antônia de Fernando Meirelles? A banalização do problemas sociais é algo evidente e real no nosso meio. Terry Eagleton afirma: “Os interesses políticos governam os culturais, definindo assim uma versão de humanidade”[2]



Plínio Marcos, ao escrever a sua obra, tem como objetivo ressaltar apenas a falta de perspectivas sociais? A política brasileira atrelada ao modelo neoliberal afirma que: “o número de pobres caiu significativamente, graças à estabilidade.”[3] Os índices governamentais afirmam que o Brasil caminha para um processo de mudança social, graças ao investimento no setor, mas, infelizmente, na realidade nacional é mais fácil enxergarmos um Querô do que uma Antônia. É real a falta de recursos e a incapacidade política de solucionar problemas como o da criminalidade.



Querô é a transposição de uma realidade nua e crua e, em um primeiro momento, nos faz ter pena, medo, compaixão... No entanto, esses sentimentos nada mais são do que reflexos da regra neoliberal presente na sociedade. Frederic Jameson diz: “o risco é que quanto mais se insiste na miséria e na impotência, mais essas pessoas aparecem como pobres vítimas passivas, facilmente domináveis.”[4] O objetivo imperialista estadunidense está nas telas e é justamente esse, mostrar a superioridade cultural e a ação de poder universal, transformando o seu discurso político como o salvador para o fim da miséria humana.

[1] FERRO, Marc. Verbete Cinema e História. In: Burguiére, André. Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1983.
[2] EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. Lisboa: Actividades Editoriais, 2003, p.19.
[3] POBREZA cai ao menor nível desde 1987. Folha online. 19 de set. 2007. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u329659.shtml. Acesso em: 29 se set. 2007.
[4] JAMESON, Frederic. A cultura do dinheiro.Petrópolis: Vozes, 2001, p.21




Leandro Pereira Gonçalves (CES-JF/Observatório da Indústria Cultural)

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