quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Saneamento Básico, o filme




Está em cartaz nos cinemas o novo filme de Jorge Furtado, Saneamento Básico, o filme. Na história, os moradores de um pequeno vilarejo no sul do país se reúnem para pressionar o poder público a atender uma antiga reivindicação: a construção de uma rede de tratamento de esgoto, saneando o riacho que, poluído por dejetos, exala mau cheiro e provoca doenças. Vítimas da política neoliberal de responsabilidade fiscal que retira recursos de obras essenciais, como as de saneamento básico, os representantes da comunidade se vêm às voltas com uma verba, "vinda de Brasília", obrigatoriamente vinculada à realização de um vídeo de ficção. Coincidentemente, os 10 mil reais destinados ao filme são a exata quantia necessária à obra.

A princípio, a idéia é fazer um filme amador, com recursos caseiros e usar o dinheiro para o saneamento do riacho. No entanto, aos poucos, câmera na mão e muitas idéias na cabeça, os realizadores vêm suas vidas ganharem novos sentidos. Primeiramente, a discussão sobre o que seria ficção. Com muito humor, chega-se à conclusão de que filme de ficção é filme de monstro. Daí para um roteiro onde o monstro, lembrando o velho Godzilla, é gerado pela própria poluição do riacho é um passo.

Através do filme, que de pretexto para captar verbas para a obra se torna uma finalidade em si, os personagens transformam suas identidades e suas vidas. Por alguns momentos, que não sabemos se serão breves ou não, viram produtores, roteiristas, figurinistas, cinegrafistas, estrelas de cinema. Com a ajuda do olhar especializado de um técnico que faz vídeos de casamentos e aniversários, montam o filme, que ganha uma mensagem ecológica, novos padrões estéticos e mediações mais sofisticadas (de tosco, o vídeo se torna "ingênuo" ou naif) e faz grande sucesso na exibição para o público da região. Neste instante de consagração, as novas celebridades da cidade fazem discursos em que criticam autoridades públicas, apontam para os limites do patrocínio cultural "privado" (sempre passível de se transformar em renúncia fiscal por parte do Estado através de leis de incentivo à cultura) e explicitam o processo de reconstrução de suas próprias identidades.

Longe de assumir uma perspectiva idealista que vê na cultura uma esfera à parte, capaz de oferecer salvações individuais e de reformar a barbárie neoliberal (afinal, apesar do sucesso do filme, o esgoto continua a correr a céu aberto no vilarejo), Saneamento Básico suscita a discussão sobre a relação entre arte, enquanto trabalho coletivo, e formação de subjetividades no mundo contemporâneo. A arte pensada não como assunto exclusivo de especialistas e de gênios talentosos, mas sim como trabalho humano significativo que, se não é imune ao processo objetivo da alienação sob o capitalismo, por outro lado guarda potencialidades humanas criativas e libertadoras. Nesse sentido, é fundamental discutir as políticas públicas para a cultura, sem reduzi-las ao apoio às falsas promessas de salvação individual via mercado cultural, esperança espetacularizada na sociedade do desemprego e do entretenimento, no estilo de ONGs que proliferam hoje em favelas e periferias brasileiras. Se o processo de mercantilização da cultura avança a passos largos nos dias em que vivemos, é preciso recuperar o horizonte da luta por uma cultura comum, ordinária, inconformista, capaz de semear (ou engravidar, para quem viu o filme) o caminho da construção de um outro mundo. Com a palavra, Raymond Williams:

"Acredito que o sistema de significados e valores que a sociedade capitalista gera tem de ser derrotado no geral e no detalhe por meio de um trabalho intelectual e educacional contínuo. Esse é um processo cultural a que denominei a revolução longa e, ao fazê-lo, eu queria assinalar que é uma luta genuína, parte das batalhas necessárias da democracia e da vitória econômica da classe trabalhadora organizada. (...) a tarefa de um movimento socialista vitorioso envolverá a imaginação e o sentimento, tanto quanto fatos e organização. Imaginação e sentimentos não no sentido fraco - 'imaginar o futuro' (o que é uma perda de tempo) ou o 'lado emocional das coisas'. Ao contrário, temos de aprender e ensinar uns aos outros as conexões que existem entre formação política e econômica e, talvez o mais difícil, formação educacional e formação de sentimentos e de relações, que são os nossos recursos mais imediatos em qualquer forma de luta."

A propósito: a trilha sonora é belíssima, recheada de canções italianas. C'é gente che ama mille cose....
Adriana Facina
Doutora em Antropologia
profa. do Departamento de História da UFF

Um comentário:

Bruno Fernando disse...

Muito boa a análise, e mais ainda a vida que esse blog está ganhando.

E nada como um bom filme de Jorge Furtado analisado atavés de olhar multiperspectivamente crítico. Afinal, tão importante quanto analisar e apreciar um filme (não necessariamente nessa ordem), é contextualizarmos seu conteúdo.
Trazendo de volta nosso velho companheiro, Raymond Williams, é a materialidade da cultura, os efeitos materiais da cultura e os modos como ela éimportante no processo de dominação, mas também como fonte de resistência e intervenção.

Vamos aguardar as próximas postagens do pessoal...

bjs, Adriana
Bruno