sábado, 24 de maio de 2008

Conservadorismo sensível: reflexões livres sobre Juno e O Caçador de Pipas



por Adriana Facina (Observatório da Indústria Cultural/UFF)

Como regra geral, o pensamento conservador tende a ser duro e raramente combina com humor. A propaganda anticomunista, por exemplo, historicamente buscava semear medo através de imagens apavorantes ou de ameaças ligadas à expropriação da classe média ou mesmo aos perigos da guerra. Hoje, o orientalismo anti-islâmico apresenta os povos muçulmanos como terroristas, mais uma vez utilizando o medo como meio de convencimento. Mais um exemplo, dessa vez no âmbito das questões morais: o discurso anti-aborto que atribui ao óvulo recém fecundado estatuto de ser vivente e ameaça com a condenação ao inferno as mulheres que optarem por interromper uma gravidez não desejada.


O medo e as ameaças, reais ou imaginárias, são armas importantes de controle social e convencimento ideológico. No entanto, são pouco sutis e tendem a ser mais eficazes com públicos já dispostos a acreditar na mensagem veiculada. Como então buscar o consentimento daqueles que não se dobram aos argumentos mais simplistas, que guardam espírito crítico suficiente para duvidar de discursos muito bem arranjados, excessivamente carrancudos e moralmente rígidos?


Recentemente, dois filmes que fizeram sucesso nos cinemas me levaram a pensar sobre as necessárias estratégias do discurso conservador em busca da eficácia. Ambos não são filmes de guerra, onde a mensagem costuma ser mais direta, e nem dramalhões lacrimogêneos permeados por excessos sentimentais. São filmes considerados “sensíveis” pela crítica, por tratarem de temas delicados de um modo relativamente leve, com certo humor e no registro da sensibilidade das relações humanas vistas bem de perto.


O primeiro deles é Juno, ganhador do Oscar de melhor roteiro original deste ano. A personagem principal é uma adolescente que engravida do melhor amigo porque, num dia de tédio, resolve transar com ele. Juno, cujo nome vem da mitologia greco-romana, é uma menina esperta e espontânea, tem “tiradas” originais, bem ao gosto de uma sociedade onde a singularidade é vista como salvação da mesmice mercantilizada. Ela tenta fazer um aborto, mas desiste por causa de uma amiga que faz campanha anti-aborto em frente à clínica e que lhe diz que seu bebê já tem unhas. Além disso, é atendida na recepção da clínica por uma mulher com um look pós-punk que lhe oferece camisinhas de amora, o que lhe deixa com nojo. Por isso, decide que vai levar a gravidez ao seu término e depois dar a criança em adoção para um casal que fosse bem legal, escolhido em páginas de anúncios de jornal.


Quando conta ao pai e à madrasta o que se passa, recebe o apoio e carinho deles, muito compreensivos com a menina, ainda que esta, em seus momentos de rebeldia, faça coisas como vomitar num vaso de cerâmica que enfeita a entrada da sala.


O casal é escolhido: ricos, semi-alternativos, a mulher que queria muito ter filhos (dizia ter nascido para ser mãe) e não podia, consumista e um tanto histérica e o marido imaturo, meio incerto da escolha da paternidade. Eles entram em crise, se separam, mas Juno, que aparentemente flertava com o homem e sofre certo assédio dele, se solidariza com a mulher e mantém sua promessa de lhe dar o filho.


Em meio a isso, Juno se descobre apaixonada pelo pai da criança, seu colega de escola, que também a ama. Os dois ficam juntos, mas mesmo assim a decisão de dar a criança permanece. Depois do emocionante parto, a mãe adotiva e já separada vai à maternidade e se dá uma bela cena de seu encontro com o bebê. Enquanto isso, Juno e seu namorado se abraçam no quarto do hospital, choram e preferem não ver o filho que não será deles. O jovem casal fica junto e a mulher fica feliz realizando o desejo da maternidade.


No final, eu em lágrimas com as cenas derradeiras (principalmente cenas de parto me emocionam muito), fiquei pensando que aquele era o filme anti-aborto mais inteligente que já vi na minha vida. Tudo acaba bem. Nenhum tipo de ônus visível para ninguém. Os adolescentes permanecem adolescentes. Nenhuma miséria humana. Nem crime nem castigo. Todos com suas absolutamente normais e sensíveis vidas, prosseguindo calmamente na normalidade cotidiana. Nada é estranho. Não há choques, crises morais ou éticas, nada que lembre os dramas humanos que estão no coração da dramaturgia moderna. Simples assim.


A mesma sensação tive com O caçador de pipas. Mesmo cuidado estético, das imagens à trilha sonora. Ótimos atores, sobretudo crianças. Baseado num best-seller que vendeu mais de um milhão de cópias no Brasil, segundo a divulgação do filme, a história tem forte teor anticomunista e orientalista, defendendo a injusta elite afegã como se ela fosse a alternativa ilustrada e nobre em relação à indistinta barbárie soviética ou talibã, hoje com novo fôlego injetado pela invasão estadunidense e pelo presidente fantoche Hamid Karzai, indicado pelos EUA. O pai do narrador do filme, o menino que se torna escritor, é um homem rico, ilustrado, forte, meio duro, mas amoroso e justo, além de corajoso. Ele tem de fugir do Afeganistão após a invasão soviética e vai para os EUA com o filho viver uma vida modesta, porém digna. Profundamente anticomunista, fica claro que, na visão do autor do livro transposto para as telas, que esse seria o tipo de homem ideal para conduzir a política em seu país, elemento civilizador daquela sociedade, apesar de seu perfil meio Casa-Grande & Senzala, já que teve um filho bastardo nunca assumido com a mulher do serviçal que trabalhava há décadas em sua casa, sendo “quase da família”.


Mas deixando a macropolítica de lado, o que mais me chamou a atenção foi o relativismo moral do filme. O “herói” é o jovem escritor que narra a história. Na infância, tinha como amigo inseparável o filho do empregado (na verdade seu irmão, mas ele só vem a saber disso ao final da película), com quem compartilhava grande paixão por pipas. Covarde, ele assiste passivamente a agressão e estupro do menino que tinha ido buscar para ele uma pipa cortada numa disputa nas lajes de Cabul. Depois do ato de covardia, ele faz de tudo para o pai expulsar o empregado com o filho, pois é incapaz de conviver com o amigo depois do acontecido. Por fim, ele simula o roubo de um relógio e consegue o seu objetivo de tirar o amigo de sua casa e de sua vida. Fiel ao amigo/patrãozinho até o fim, o filho do empregado sequer se defende da falsa acusação e, percebendo as intenções do outro, assume a culpa do roubo.


Anos se passam, o narrador vai para os EUA com o pai, se casa, publica um livro (desde pequeno ele gostava de contar histórias e seu amigo era seu principal ouvinte e crítico) e recebe a chamada telefônica de um amigo do pai de quem gostava muito. Esse personagem o convoca a voltar ao Afeganistão para resgatar o filho de seu antigo amigo, que agora ele descobre ser seu irmão, assassinado pelos talibãs. O menino órfão é abusado pelo mesmo rapaz, agora um chefe talibã, que havia estuprado seu pai. Depois de resistir um pouco e aparentemente convencido pela descoberta do parentesco, o narrador parte para a heróica busca do menino e consegue resgatá-lo e levá-lo consigo para os EUA. Dessa forma, procura se redimir do que fez ao irmão bastardo no passado.


Mais uma vez, encontramos um personagem que é destituído de culpa, não é atormentado, sem vestígios dostoiévskianos. Levava sua pacata vida sem sobressaltos até o momento em que é empurrado para a missão e, de repente, consegue assumir posturas heróicas e de enfrentamento com os talibãs. Sem dilaceramentos, sem tormentas, sem dramas nem tragédias. Somente uma sensibilidade anestésica que, desconfio, mergulha em lágrimas discretas nossa explícita normalidade alienada.

4 comentários:

Anônimo disse...

Adriana,
Adorei o texto, é um critica pertinente/necessária, pois muitas são as faces do conservadorismo. Lembro-me das igrejas neopentecostais, que têm um discurso bem adequado à cultura pós-moderna, onde vemos uma roupagem "moderna", jovem, avançada, mas com um conteúdo conservador.

bloggi disse...

Eu também tive a mesma sensação quando vi o filme, fiquei incomodada quando vi a jovem fazendo passeata anti-aborto na frente da clínica, e com a opção de doar a criança sendo mostrada como "normal" e aceita por pais permissivos demais, quase tão perdidos na situação quanto a jovem, diante das fortes emoções. A insensibilidade e a superficialidade parecem dar a tônica da narrativa, pois a menina só se confronta mesmo com a conseqüência de seus atos na choradeira final, abraçada com o namorado ao saberem que o bebê deles partiu. Como a própria Adriana lembrou numa conversa, essa atitude blasé parece ter repercussão na vida moderna, vide a frieza exaltada como força da mãe de Isabella Nardoni, inclusive ajudando a transformar o seu sofrimento em espetáculo diante de orkuts etc. O que será que contém esse anestésico tão forte para a sensibilidade humana e para os sentimentos, esvaziando os fatos de toda a sua dramaticidade e tentando tornar banais e corriqueiras as situações mais cruéis?
A recusa em enxergar as coisas como elas são é certamente a primeira dose desta anestesia, que pode ser viciante, como qualquer droga pesada num organismo frágil e sedento de escapismo...
Contra isso, artigos como esse, que servem como um café forte que nos desperta o pensamento para outras realidades e que nos redime de uma culpa que porventura possamos carregar ao não sermos tão "fortes" como os minerais duros diante de uma situação escandalosamente cruel.
bjs amiga, e obrigada por mais essa dose de sensibilização, este antídoto, aos nossos espíritos.

Dally Schwarz disse...

com certeza, concordo totalmente que Juno é uma saída fácil, para aqueles que criticam o aborto como um ato somente irresponsável e falam sobre isso como se a pessoa que aborta o faça com uma facilidade fisica e emocional como comprar e tomar um remedio. Porém esquecem que ter um filho(nao abortar) e se desfazer dele para adoção também me parece um ato de irresponsabilidade e muito fácil.
Otimas criticas.

Anônimo disse...

Gostaria de sugerir que convidassem o prof. Badaró para escrever ou editar este blog. Seria um grande reforço.