quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Rio de Janeiro: preâmbulo de uma ficção científica


Certo dia, chegando em casa a noite, liguei a TV enquanto comia alguma coisa preparada de qualquer maneira. Já era tarde, e estava passando um filme. Já devia fazer uns bons vinte ou trinta minutos que havia começado, mas me sentei ali, vendo o que me esperava. Descobri no meio do filme que se chamava O Sexto Dia.


Arnold Schwarzenegger protagoniza uma ficção científica. A princípio, nada mais comum - mais um filme besta com maus atores, péssima direção e reacionário. Era tudo isso, mas tinha uma coisa muito surpreendente: sua ambientação. Em outros filmes de ficção científica, o cenário é normalmente aquele em que as máquinas são mais poderosas que os homens, ou um governo autoritário controla por meio das mais diversas tecnologias cada movimento de cada cidadão. Em O Sexto Dia, tudo é muito parecido aos dias de hoje. A diferença é que a tecnologia de clonagem animal e humana está totalmente desenvolvida - a ponto de, se seu cachorrinho morrer, uma loja pode fazer um clone e trazê-lo de volta. A questão é: a clonagem de animais é permitida, mas uma lei proíbe clonagem de seres humanos.


Aí se põe uma questão ética ausente em outros filmes, quando se toca na lei. Em outros, não se fala em lei, o poder da máquina já substituiu essas questões. Aqui ainda é objeto de disputa a evolução desta tecnologia. Assim, há uma disputa fundamental instaurada no centro da trama do filme, pois a história do personagem de Arnold Schwarzenegger gira justamente em torno desta proibição.


Uma grande empresa faz clonagens clandestinas, mas por um descuido, um destes clones escapa. Os clones podem receber também, através de um mecanismo que recupera toda a vida pregressa do clonado, a personalidade total original. Assim, com um teste no personagem do Arnold Schwarzenegger, seu clone escapa e acaba indo ocupar o seu lugar, continuar a sua vida, pois não sabe que é um clone. Aí se instaura a confusão, pois agora há dois Arnold Schwarzenegger.


E a luta - com um fim moralista, conservador - se dá em torno de saber quem é quem, e qual tem a legitimidade de continuar a viver. Mas o importante não é essa história boba - mas o contexto em que ela se dá: um cenário em movimento, onde o conflito por uma questão decisiva, assuntos de muitos outros filmes de ficção científica, estava se dando e ainda não estava decidido: se o poder das máquinas se sobreporia aos homens, cenário mais comum em outros filmes. Ainda não tinha sido possível tornar normal a realidade da clonagem humana, ainda que ela já existisse e fizesse parte da vida das pessoas - seja como contestação, aceitação, atividade clandestina, clonagem de animais, etc.


O que importa é que neste filme foi captado um momento que seria anterior a outros filmes, que já têm a tecnologia com um poder superior ao humano. E, assim, consegue ter movimento - ao contrário de outros, que têm um cenário estático. E nos faz pensar em momentos de mudanças profundas, como elas se dão. Elas fazem parte de nosso próprio cotidiano, mas não conseguimos percebê-las enquanto tais.


Na última semana, o exército, a polícia militar e a Força Nacional de Segurança, invadiram o Morro da Providência, no Rio de Janeiro, com o objetivo de garantir a realização das obras inscritas no Programa de Aceleração do Crescimento, do governo federal. O projeto das obras, do Senador Marcelo Crivella, prevê a blindagem - a blindagem - de 782 casas da favela. Isto em um ano em que as operações da polícia militar e do BOPE se intensificaram nas favelas da cidade - chegando ao ápice nas vésperas dos Jogos Panamericanos que, em um dia, 19 pessoas foram assassinadas no Complexo do Alemão.


Blindagem. Parece que ninguém reparou que obras o exército foi garantir. Blindagem de 782 casas da favela.


É fácil imaginar um filme de ficção científica em que todas as casas da cidade são blindadas, pois nas ruas há um conflito permanente entre facções criminosas e as forças de segurança do governo, com armamentos pesados, de uma maneira que é impossível sair de casa, pois há um tiroteio e explosões em cada esquina. Neste filme, um soldado das forças do governo fica ferido e acaba entrando numa casa e dorme com uma recém-pós-adolescente moradora da casa que nunca viu a rua. A partir daí, são as tentativas do soldado de levar a menina para o único lugar onde ainda se pode ver o céu sem os clarões das granadas, explosões e tiros de armas laser cruzando o céu e zunindo nos ouvidos.


Este filme não existe, mas bem que o que está acontecendo no Rio de Janeiro serviria de preâmbulo, assim como aquele filme do Arnold Schwarzenegger é uma espécie de preâmbulo para outros filmes de ficção científica. Nos filmes - com a estranha exceção deste O Sexto Dia - o poderio das máquinas ou o controle absoluto do poder já é dado, e não sabemos como ele foi instaurado. Em O Sexto Dia, é o processo de instauração de um poder totalitário baseado na clonagem humana que está em jogo.


Como no Rio de Janeiro, que pode estar ocorrendo um processo de instauração de um cenário ao menos parecido com o narrado no filme imaginário. Mas o interessante, como no filme do Arnold Schwarzenegger, é que ainda não está decidido, apesar da força dos dos de cima. O que não podemos deixar de ver, é a possibilidade desse cenário se instaurar.


Não pensar mais que é mais uma invasão do exército e polícia em comunidades pobres, com todas as violências e violações dos direitos humanos. Ao contrário, pode ser a instauração de um cenário - velado, talvez não elaborado abertamente - de um estado de exceção permanente em que o próprio Estado blinda as casas das famílias. Como se fosse a construção de um viaduto: faz o capitalismo funcionar melhor.


No futuro, como nos filmes de ficção científica, poderá haver um cenário sombrio, o poder das máquinas e um Estado super-totalitário. Mas se esquecerá que foi preciso um processo bastante dolorido, com modos de vida em gestação destruídos, para este cenário onde um soldado ferido e uma donzela fogem para ver o céu. O Sexto Dia e o Rio de Janeiro de hoje nos lembram deste processo.


14 de dezembro de 2007



André Francisco Berenger de Araujo (UFF)

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