terça-feira, 22 de janeiro de 2008

O grande chefe

por Renata Meirelles (Observatório da Indústria Cultural/UFF)




Em 2007, O grande chefe, filme do cultuado diretor dinamarquês Lars Von Trier, que dirigiu, entre outros sucessos Dançando no escuro e Dogville, chegou aos cinemas brasileiros, permanecendo pouquíssimo tempo em cartaz.


Apesar de um tanto “enigmático” e tortuoso, o filme vale a pena ser assistido, já que traz, em seu enredo, uma abordagem sobre uma questão latente e universal: a tensa relação entre patrões e empregados.


Por meio de uma seqüência de situações inusitadas, O grande chefe leva o espectador a refletir sobre o absurdo da experiência de trabalho nos dias de hoje, quando as relações entre patrões e empregados são, cada vez mais, pontuadas por terceirizações, contratos temporários e precarização das condições de trabalho.


Partindo de uma situação absurda, o filme tem início quando um funcionário de uma empresa dinamarquesa (Ravn) contrata um ator decadente (Kristoffer) para que este represente o papel de chefe de sua empresa. Logo, Kristoffer percebe que teria uma tarefa bastante ingrata. Aos poucos, o ator passa a se relacionar com os funcionários e a conhecer a estranha dinâmica interna da empresa.


Kristoffer descobre que Ravn é o verdadeiro chefe da empresa. No entanto, sempre se apresentou aos funcionários como sendo apenas uma subchefia, afirmando que o verdadeiro chefe, o “grande chefe” se encontraria nos Estados Unidos. Enquanto este “grande chefe” “viajava”, um inocente ursinho de pelúcia ocupava seu lugar. Comportando-se como amigo de todos os funcionários, Ravn consegue conquistar a confiança de todos, que, inclusive lhe emprestam dinheiro para que a empresa fosse construída.


Assim, Ravn administrava sua empresa através da máscara de um chefe distante, mas ao mesmo tempo, onipresente. Ao “grande chefe” eram delegadas as decisões mais impopulares. Por meio de uma comunicação virtual, Ravn passava-se por “grande chefe” e, dessa forma, se relacionava com seus funcionários. Com cada um deles, se comportava de maneira diferente. Com a mais atraente das funcionárias, simulava situações de flerte, com a mais romântica, prometera casar-se, com o mais carente, agia com benevolência etc.


No entanto, um dia Ravn decide, para beneficio próprio, vender a empresa, construída com o capital dos funcionários enganados. Interessado em adquirir a empresa, um comprador islandês, exige, para fechar negócio, a presença de seu sócio majoritário. Ravn, então, se vê obrigado a apresentar o “grande chefe” para realizar tal transação. É aí que entra em cena Kristoffer, que teria que representar o papel de “grande chefe” para poder, assim, fechar negócio.


Kristoffer se vê envolvido com a dimensão ética que implicaria a representação de seu papel, já que descobre que uma das cláusulas do contrato de venda previa a demissão de todos os funcionários, uma vez que o novo dono da empresa não admitiria a possibilidade de trabalhar com a antiga equipe.


Ao perceber que sua “atuação” poderia influir no destino de muitas vidas, de forma irônica e surpreendente, Kristoffer passa a gostar de representar seu personagem. Logo, se vê incomodado com as implicações éticas que teriam a venda da empresa, tornando-se, assim, um empecilho para as pretensões de Ravn.


Ainda que Lars Von Trier conduza a narrativa de forma um tanto confusa, o sentido crítico do filme aparece de forma bastante evidente. Em muitos momentos, soa como um questionamento ao capitalismo que não tem cara, endereço e identidade. Se antigamente a presença do chefe se mostrava indispensável à produtividade de sua empresa, nos dias de hoje, cada vez mais, as empresas prescindem de sua presença.

Em uma época de contratos temporários e funcionários terceirizados, a dinâmica capitalista se torna, cada vez mais, impessoal. O filme, assim, mostra como é possível que a chefia de uma determinada empresa exerça controle sobre seus funcionários à distância, de maneira fria e racional.


A possibilidade de comunicação virtual permitiu que as relações entre patrões e funcionários se tornassem mais diluídas e difusas. Dessa forma, algumas das situações, que antes poderiam constituir conflitos entre classes, podem ser amortecidas e até mesmo evitadas por meio da volatilidade das mensagens de e-mail.


Assim, há situações em que as demissões são explicadas pela “direção da empresa”. Da mesma forma, as reivindicações trabalhistas são negadas pela dinâmica do “mercado” ou pelas exigências do mesmo. Os conflitos entre classes, tão concretos, se tornam abstrações no linguajar da classe dirigente.


Muito embora O grande chefe, por vezes, soe confuso, com sua trama pouco linear, é uma crítica frontal aos contornos que as relações capitalistas vêm adquirindo na era virtual. É também uma crítica à ideologia corporativista de muitas empresas, isto é, à idéia de que chefes e funcionários comporiam uma grande e unida família, mascarando, desta forma, os conflitos entre classes.


Fica então a sugestão de conferir o filme que será exibido na Mostra “Os Cineastas da Vida Interior”, que acontecerá no dia 22 de janeiro na Caixa Cultural. (Av. Almirante Barroso, 25, centro, ao lado da estação de metrô Carioca). O grande chefe será exibido dia 29/ 01, seguido de um debate às 20h com Ruy Gardnier, Hernani Heffner e José Joffily. Vale lembrar que o evento é gratuito.

4 comentários:

Pitty que Pariu disse...

A sua crítica somada ao currículo do diretor fazem o filme ser no mínimo instigante. Tentarei conferir.

Observatório da Indústria Cultural disse...

Olá Renata.
Estou ansiosa para ver o filme e refletir sobre o que vc mencionou sobre a narrativa ser confusa, pois creio que o Lars e o pessoal do dogma 95 usa muito da "confusão" ou não linearidade para fazer pensar.
abs,
Adriana

JH disse...

Olá;

Gostei muito do texto. Realmente instigou para dar uma conferida no filme.

E, também sobre a "não-linearidade da narrativa", creio que só vendo mesmo para comentar. Contudo, acho que, se bem feita, essa quebra da estrutura narrativa convencional só tem a acrescentar a um conteúdo bacana. Enfim...

Alguém já não disse (com outras letras, obviamente) que "não há arte revolucionária sem forma revolucionária"?

abs/bjs

Hidalgo disse...

Oi, gostei muito do texto, embora seja excessivamente crítico. Peza a mim considerar uma obra de arte somente pelo seu aspecto crítico. O que importa fundamentalmente , já que não é um tese de sociologia, é o impacto estético que produz. A sua capacidade de me levar a outras paragens, daí a importância de inventar modos de expressão, linguagem, seja lá o que for, distintos. "Novos ouvidos para nova música. Novos olhos para o mais distante" (F. Nietzsche). Para além da crítica, há a criação. Ou melhor, a crítica é ponto zero da invenção, e o zero não é vazio!!!! Não esquecemos o que os russos fizeram com o cinema.

Bjos a todos,
parabéns pelo texto.

Luiz.