quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Esvaziamento da experiência e declínio da autoridade do testemunho em Jogo de cena, de Eduardo Coutinho



“nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes”
Walter Benjamin[1]



O cinema de Eduardo Coutinho – pelo menos, de Santo Forte para cá – parte da definição do dispositivo, ou seja, do estabelecimento dos procedimentos de filmagem, como elemento primeiro e mais fundamental na feitura do documentário[2]. É no encontro desse dispositivo – previamente estabelecido – com o mundo – que é puro movimento – que se dá a riqueza do cinema de Coutinho. A natureza polifônica de seus filmes, como apontou muito pertinentemente Consuelo Lins a partir dos trabalhos de Mikhail Bakhtin, recoloca o documentarista no campo mais amplo do audiovisual, esvaziando certa tradição positivista que poderia concebê-lo como lente para uma verdade, antes viabilizada pelo ponto de vista monológico do documentarista. No entanto, do estabelecimento dos procedimentos de filmagem como pressuposto, e da tentativa de transparência na revelação da opacidade inerente ao filme que os documentários de Coutinho trazem, não podemos deduzir o dispositivo como incondicionalmente desinteressado ou impotente diante da riqueza em contradições e ambigüidades que o mundo nos oferece.


Digo isso porque Jogo de Cena, último filme de Coutinho, deixa algumas inquietações que, em última instância, poderíamos remeter ao dispositivo. Atendendo a um anúncio de jornal, oitenta e três mulheres contaram suas histórias de vida num estúdio. Em junho de 2006, vinte e três delas foram selecionadas e filmadas no Teatro Glauce Rocha. Em setembro do mesmo ano, atrizes interpretaram, a seu modo, as histórias contadas pelas personagens escolhidas[3]. Este gesto de Coutinho é dotado de implicações importantes, na medida em que vai radicalizar a dimensão performativa do testemunho, esfacelando a distinção entre categorias a partir das quais opera o pensamento ocidental desde muito tempo, tais como o ser e o parecer, a essência e a aparência. Esse gesto antimetafísico é muito eficaz na problematização da relação de crença que o espectador estabelece com as imagens documentais e, mesmo, com o mundo. Contudo, a dimensão performativa do depoimento e a fragilidade da fronteira entre pessoa e personagem, principalmente quando a presença da câmera se efetiva já estavam dadas – com mais sutileza – em outros filmes de Coutinho, como, por exemplo, em Edifício Master.


Quando Coutinho e sua equipe adentram um dos apartamentos do Edifício Master e são recebidos com um banquete ou ainda, nas inúmeras seqüências de cantoria que os filmes de Coutinho trazem, somos forçados a suspeitar da presença da câmera no espaço privado das pessoas/personagens como operadora de uma mudança fundamental em seus comportamentos, que se ancora em certa formatação do que seria uma vida “midiatizável” pelos produtos da indústria cultural. Tudo isso é de uma grande potência crítica ainda que o próprio Coutinho tenha dito que “Querer mudar o mundo com o cinema é uma utopia maluca, mas tudo bem, cada um pode ter a sua”[4]. Apesar de se afastar de qualquer projeto revolucionário e de considerar tais projetos “utopias malucas”, Coutinho é claro quanto a sua ética, e prossegue “Agora, querer mudar o lugar e as pessoas que você está filmando, isso é de uma arrogância e de um autoritarismo absurdos. De toda maneira, para mudar o mundo, é preciso antes conhecê-lo”[5].


Foi no sucesso desse empreendimento de conservação das pessoas/personagens – objetos/sujeitos de seus filmes – nas contradições e ambigüidades que elas encerram, que o cinema de Coutinho pôde se constituir como polifônico, e não pelo simples fato de que se constitui a partir do registro de um número plural de personagens. Digo isso, porque Jogo de cena traz algumas peculiaridades que, de acordo com nossa leitura, colocariam em dúvida a polifonia enquanto característica que continuaria presente na obra de Coutinho. Em primeiro lugar, há um deslocamento territorial das personagens que, intencionalmente ou não, vai contra o projeto ético explicitado no parágrafo acima, que se volta contra a “arrogância” e o “autoritarismo” de mudar o lugar e a pessoa. O lugar das não-atrizes (matrizes não localizáveis da encenação) é alterado e o das atrizes não, uma vez que tanto o primeiro grupo quanto o segundo são deslocados para o abrigo de “qualquer” história: o palco. Ao colocar todas as suas personagens dentro do Teatro Glauce Rocha para dar ênfase sobre o procedimento ético e estético da representação, Coutinho objetifica todas as vozes – inclusive a das atrizes – pondo-as a serviço de seu próprio discurso de documentarista que quer problematizar, radicalizando ao extremo, a autoridade com que investimos a imagem de testemunho.


Lógico que, se mantivéssemos alguma distinção entre o filme e a vida enquanto algo mais amplo, que contemplasse o argumento de que Jogo de cena é “apenas um filme”, não haveria problema algum nas ambigüidades éticas que o filme encerra, até porque é um filme absolutamente sedutor. Mas, desde Cabra marcado para morrer – para deixar bem sublinhada a importância que atribuímos ao cinema de Coutinho – não conseguimos estancar ou elaborar qualquer hierarquia que submeta o cinema à macro-política ou às forças sociais de modo mais amplo, na medida em que um filme sintomatiza, ao mesmo tempo em que conforma determinado modelo de sociedade. Assim, arriscaríamos dizer que a radicalização da representação operada por Coutinho atende, reforçando, um certo projeto pós-moderno que relativiza qualquer “verdade” e se desdobra no esvaziamento dos “lugares de fala”, o que por um lado “liberta” aqueles que podem consumir “novas identidades” e por outro inviabiliza as articulações políticas e a disputa no interior das representações sociais articuladas pelo cinema-documentário – e pelo audiovisual de modo mais amplo – daqueles que não estão satisfeitos como o mundo, o “real” ou o “representado”.


A questão é que acreditamos que há uma diferença muito significativa e que precisa ser sublinhada – e não apagada – entre o que é dito, autorizado pela experiência e pelo lugar de fala e o que é dito por atores a partir de apropriações da experiência do outro[6]. Não que isso produza uma hierarquia entre ficção e documentário, que confira ao documentário uma inerente potência política progressista e à ficção um caráter inverso. Mas um dispositivo que produz esse embaralhamento, de maneira que a matriz do discurso se apaga, questiona a própria natureza da experiência e, neste sentido, inviabiliza uma vivência do político que se ancore na fome, na miséria e na experiência de opressão (que, acreditem, mesmo depois do Cinema Novo continuam a existir) e que pode, por isso mesmo, ser revolucionária. Se apontar para a natureza construída do filme é um gesto que, importado das vanguardas, revela sua opacidade e relativiza seus efeitos de verdade, o modo transparente como isso é feito talvez esteja na hora de ser questionado, a fim de que o próprio dispositivo, que não é desinteressado – como nada é –, possa ser revisto.


[1] BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza”. In.: __________. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
[2] Cf. LINS, Consuelo. O cinema de Eduardo Coutinho:televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. Muito do que digo neste texto sobre posições de E. Coutinho retirei deste livro de Consuelo Lins que, além de estudiosa de sua obra, é documentarista e integrou as equipes de Edifício Master e Babilônia 2000.
[3] Cf. blog oficial do filme, em http://www.cinemaemcena.com.br/jogodecena/blog.asp. Merece destaque a coincidência, no blog oficial, da sinopse do filme com o que seria a descrição de seu dispositivo, o que vem reafirmar a preponderância deste sobre um “tema” ou “objeto”. Podemos observar essa coincidência tão radical desde O fim e o princípio, de 2005.
[4] Cf. LINS. Op cit. p. 95
[5] Op cit. p. 95
[6] Destaco a presença de não-atores na mise-en-scène neo-realista italiana, nos filmes de Eisenstein e, mais recentemente no belo Mutum, de Sandra Kogut, todos comprometidos com as implicações éticas e estéticas da representação, quando esvaziada da experiência.


Icaro Ferraz Vidal Junior (UFF/Observatório da Indústria Cultural)

3 comentários:

Anônimo disse...

o problema parece estar no econtro ou desencontro dentre o projeto estético e um projeto político-societário... a questão é se um cinema anti-reificador pode promover reificação - e se isso pode ser confirmado na "despretensão política" do autor? não existe uma autoridade a priori nos "lugares-de-fala populares" - essa parece ser a perspectiva do autor - por isso não há esvaziamento... não há autoridade em nenhum lugar por aversão ao autoritarismo e para promover essa "desautorização generalizada" o autor concentra toda autoridade em seu método, em seu princípios? é isso?

Unknown disse...

oi, anônimo,
minha idéia, quando escrevi o texto, não era pensar este filme do Coutinho a partir de uma idéia de autoria, para assim rebater na figura do diretor toda a "responsabilidade" pelos desdobramentos políticos que penso que o filme produz. O que quis, antes disso, foi inserir o filme em um contexto social mais amplo, em que essa suposta "despretenção política" vai de encontro a um grande e crescente conservadorismo, uma vez que a neutralidade política nada mais é do que um reforço das forças que configuram as relações de poder vigentes. Quanto à aversão ao autoritarismo, me parece que é um argumento muito eficaz (por motivos históricos) para legitimar posturas que não se engajam em novas formas e projetos de resistência política, mas que, por motivos vários (um deles é a crecente conversão dos discursos progressistas em maus um "nicho de mercado") também não se filia à direita.
obrigado pelo comentário,
abraço,

Anônimo disse...

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