quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Guerras necessárias, humanos supérfluos



Na Guerra Muitas Coisas Crescerão


Ficarão maiores As propriedades dos que possuem

E a miséria dos que não possuem

As falas do Führer

E o silêncio dos guiados.


Brecht




Não há como deixar de comentar o espetáculo midático mais aterrorizante da semana. O helicóptero da polícia sobrevoando a favela da Coréia, atirando em dois rapazes que tentavam fugir pelo matagal. Execuções sumárias, sem julgamento, de supostos bandidos. Imagens de guerra exaustivamente veiculadas nos noticiários, invadindo as casas na hora das refeições, interpelando os que chegavam ou partiam para o trabalho. Uma guerra cuidadosamente construída pela mídia e pela indústria do entretenimento. A pergunta é: estamos realmente em guerra?

Oficialmente com o propósito de desarmar o tráfico, a polícia civil entrou na favela de manhã. Com isso, a operação expôs ao perigo das balas “perdidas” os trabalhadores e trabalhadoras da comunidade, bem como as crianças, que ficaram sem suas aulas. Como resultado, muitos corpos sem identidade e sem contexto (facilmente assimiláveis ao rótulo de bandidos). Um menino de 4 anos morto, sua família dilacerada. Morto também um policial, desnecessariamente submetido ao risco de uma ação cujo roteiro atendia às demandas do circo nosso de cada dia. Quantas crianças a gente precisa perder para a morte para que um governador possa enrolar seu eleitorado?

Os dados: no primeiro semestre deste ano houve 33,5% mais mortos como conseqüência das operações policiais em relação ao mesmo período do ano passado. 694 corpos até agora contados nos “autos de resistência”.[1] No entanto, apesar de matar muito, a polícia carioca prende pouco e também tem dificuldades em esclarecer os crimes. Um levantamento feito pelo Ministério Público sobre inquéritos de homicídios concluiu que o índice de esclarecimentos, fora dos casos de prisão em flagrante (cerca de 2% do total), foi de 1%, no crime que é considerado o de mais fácil apuração.[2] Está clara a opção da política pública de segurança pela criação do confronto que ameaça a população carioca e cria a pauta sanguinolenta da imprensa, ao invés do investimento na inteligência e na investigação criminal. Ineficaz e com um custo humano intolerável, essa opção política foi incapaz de reduzir significativamente os índices de violência no estado, sendo que alguns, como o roubo a transeuntes, aumentaram de modo expressivo. A polícia também prendeu menos gente e apreendeu menos armas do que em 2007.[3]

Assim, fica claro que a guerra é uma opção política. Ela não é natural e nem necessária. Mas seu fabricar tem serventia. Sua necessidade atende aos interesses de contenção dos pobres.

O estado de exceção em que vivemos sob o capitalismo neoliberal transformou o antigo exército de reserva de mão-de-obra em seres humanos (?) supérfluos. Estes não podem mais ser incorporados, via emprego e consumo, à ordem do capital. As promessas do maravilhoso mundo das mercadorias, que agregam valor aos que as possuem, são uma realidade cada vez mais distante para bilhões de pessoas em todo o mundo. O que fazer com essa gente toda? Como garantir seu consentimento frente a hegemonia do mercado? Além do discurso de que não há saída, que naturaliza a opressão e a despossessão, é necessário um intenso aparato coercitivo, que funcione de modo exemplar e demonstre que o valor da vida humana é medido em moeda fraca.

Quando o estado de guerra é anunciado, essa tarefa é facilitada. Seja na “guerra ao terror” que legitima o direito global de matar exercido pelo Império, seja na nossa particular guerra ao suposto tráfico de drogas, na verdade um varejo que é ponta final de uma rede mais ampla que atinge os “cidadãos de bem” da nossa sociedade. A idéia de que estamos em guerra permite a exploração do medo, nos torna reféns de falsas soluções à la tropa de elite que opõem segurança pública à defesa da vida humana.

O problema é que essa suspensão consentida do estado de direito, que hoje atinge os pobres que moram nas favelas e vivem numa realidade distante da classe média formadora de opinião e consumidora de Veja, O Globo, Época e afins, possui tentáculos que se expandem e fogem ao controle de mecanismos minimamente democráticos. No mundo de incertezas em que vivemos, quem pode garantir que aqueles que hoje apóiam o extermínio em nome da segurança não serão os supérfluos a serem exterminados amanhã? Os que aplaudem a tropa da elite e sua guerra necessária à manutenção desse estado de coisas estão empenhando seu futuro e o das próximas gerações.

Comentário final: um dos amiguinhos da minha filha que acha Hitler inteligente, disse nesta semana que “as guerras são necessárias”. Além de me fornecer o mote para este artigo e assunto para debate familiar, ele me fez pensar sobre o material cultural que está (en)formando esses jovens. Com certeza, não são os livros didáticos de história crítica. Talvez uma indústria do entretenimento e da notícia que, de modo “neutro”, produz esteticamente a violência como objeto de consumo.



[1] Dados apresentados por O Globo, em 19/10/2007.
[2] Dados obtidos em http://www.josevicente.com.br/Rio_de_Janeiro_ODesafioDaSeguranca_resumo.pdf.
[3] Ver os dados em http://www.isp.rj.gov.br/Documentos/balancosemestral.pdf.


PUBLICADO EM http://www.fazendomedia.com/ em 22/10/2007

Adriana Facina (UFF/Observatório da Indústria Cultural)

7 comentários:

Anônimo disse...

O texto é muito bom para pensarmos nos discursos que são produzidos por uma sociedade, mas também e produtores da mesma. Produzir a Guerra significa, produzir o inimigo, desumanizá-lo a ponto de "fazer parecer normal e justificável" a tortura e a execução sumária.
Nosso desafio é reafirmar a todo instante que isso não é normal. Parabéns pelo texto! Eles podem até tentar "levar a nossa alma", mas resistiremos até o último instante com a nossa mais poderosa arma: a palavra.
Pâmella Deusdará

Anônimo disse...

Gostei muito do texto. Li muitos textos sobre o filme Tropa de Elite e a atuação do BOPE que se limitam em "ilustrar" o que de pior esta instituição faz, mas não conseguem aprofundar o debater e revelar nenhum das causas que deixam a população no desastre social que está ou mesmo a "necessidade" por parte de alguns setores da sociedade de uma organização como o BOPE.

Brandão Figueredo disse...

A inexistência de neutralidade ideológica em quaisquer narrativas é óbvia para poucos, embora seja esse o mais prático método de impor uma "verdade" àqueles que desconhecem que sobretudo as "verdades" são construtos oriundos de específicos contextos históricos.
Estamos a viver uma série de "verdades e saberes" que estão a ser construídos a cada dia, a cada ato, a cada texto - embora, eles mesmos tendam a se impregnar de uma atemporalidade que visa uma vontade de eternização profundamente reacionária, como - por exemplo - a da inevitabilidade dessa nossa "Suja Guerra de Cada Dia".
São textos como o seu, minha cara Adriana, que nos ajudam a desconstruir esses paradigmas que nos são impostos pela Indústria Cultural, que está intimamente ligada à naturalização do extermínio e do exercício indiscriminado do poder repressivo sob outra forma igualmente pérfida: a tortura.
Os intelectuais,´nós não podemos ficar de braços cruzados diante de fatos, imagens e narrativas que ratifiquem essas práticas imbecis e revitalizadoras da violência estrutural que norteia e cerceia nossa vida neste Rio de Já!Neura!
Basta!


Anderson.

Melina F. disse...

Gostei muito desse blog, está de parabéns.

Lendo o texto, me lembrei das inúmeras vezes que já ouvi:
" mas, é a única forma de acabar com a violência. Não tem outro jeito, é guerra mesmo, a polícia tem que entrar, se não, não tem jeito. "
Ou seja, pelo menos uma vez por semana, eu ouço várias pessoas falando que a única forma de acabar com a violência do país é com os policiais atirando em todo mundo da favela. Por "incrível" que pareça, as pessoas que sempre me falam isso, são aquelas pessoas que moram em bairro nobre, que só pegam ônibus uma vez ou outra na vida, que tem um casa "segura" e longe do crime. Claro! Esse pessoal pouco se importa! Eles não moram na favela, nem a mãe, nem o pai, não é o irmão dele de 4 anos que vai morrer de bala perdida quando tava indo pra escola. Aqui, temos um grande problema, se pensa: " ah...isso não é comigo, não me afeta de forma direta, então problema de quem é afetado ! ".

Li também o texto que falava sobre o Capitão Nascimento, é outro que está de parabéns. São poucas as pessoas que conseguem ver o filme além do popular, das pessoas que ficam repetindo as falas das personagem pra cima e pra baixo toda hora. Ninguém ainda parou para analizar o filme de verdade, eu não sei o motivo. Fico em dúvida se é porque prefere não ver, ou se não tem capacidade mesmo. Não que as pessoas sejam ignorantes e não sejam capazes de interpretar um filme, é porque toda essa propaganda, essa pirataria, toda essa coisa de que o filme é maravilha, é perfeito, cega as pessoas pra ver o que o filme de fato retrata. Pior ainda é fulano ver o filme e achar que o C. Nascimento é exemplo. Não sei se foi isso que o diretor do filme queria mostrar pras pessoas, mas, pelo menos, eu não o vejo como exemplo, não mesmo.


Melina.

Melina F. disse...

Desculpe os erros ortográficos do comentário anterior :z

Raoni disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Raoni disse...

Li os livros "elite da tropa" - que reforçou as idéias que tive após ver o filme, já que o livro insere o Bope em uma problemática de estado muito mais complexa que o
filme; que reforça estereótipos e que anula a opinião e qualquer outra manifestação das pessoas que residem nesses lugares ainda marginalizados da sociedade. o "Falcão" também é muito interessante embora os autores não consigo fazer uma contraposta ao que é relatado, mas é mais sincero, visceral, e o meio de pesquisa dos caras é a rua, os guetos e os lugares onde o Estado faz questão de só estar por meio da penalidade e da agressão.

tudo faz parte de um problema economico: as invasões aos morros por parte da polícia é primeiro uma necessidade de contenção economica do tráfico que se arma e aumenta as influencias e participações criminais em diversos setores da sociedade caso isso nao aconteça (no governo brizola ouve uma tentativa de diminuir o genocidio urbano com menos incursoes da policia, o que acasionou o fortalecimento da economia do
crime e uma insatisfaçao por parte da policia que viu seus lucros e influências diminuirem). Segundo, um problema politico, pois o crime é parte da economia da cidade, seja com o samba (influencia que vem diminuindo devido ao investimento e industrializaçao dessa cultura), seja com o pagamento de policiais, seja com o patrocínio a politicos (vide Garotinhos e Alvoro Lins) ou com a venda de drogas para diversos setores da sociedade inclusive para o mercado interno nos lugares onde atuam.
As soluções desses problemas não serão com medidas bélicas, mas sim com a discussão ampliada sobre a corrupção, com medidas drásticas de sua contenção no Estado Brasileiro e o confronto com o debate médico/social sobre a legalização das drogas no país.
Estamos realmente em guerra.