Em uma das primeiras – e mais marcantes – seqüências de O ultimato Bourne[i], vemos o encontro ágil e quase inteiramente agenciado por telefones móveis entre o protagonista Jason Bourne (Matt Damon) – que, com amnésia, segue em busca de uma “verdade” sobre si – e o jornalista Simon Ross (Paddy Considine) – que vinha publicando informações sobre Bourne e poderia auxiliá-lo nessa busca. A Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, mais conhecida como CIA, já protagonizou inúmeras produções da outra famosa “central de inteligência” americana, Hollywood, e a trilogia Bourne não abre mão dessa misteriosa “entidade” em sua trama.
O desfecho deste primeiro encontro se dá com a morte do jornalista, baleado na lotada estação Waterloo, em Londres, por um atirador que depois sabemos estar a serviço da CIA. Uma certa tradição fílmica brasileira que tem como último grande expoente o polêmico Tropa de Elite[ii], de José Padilha, confere um relevo especial ao último filme da trilogia Bourne na medida em que permite, a partir da colocação em paralelo das representações pela indústria cultural das polícias brasileira e americana, que pensemos, por exemplo, as diferenças que se produzem no interior de certos dispositivos narrativos que, num caso como noutro, operam de maneira eficaz a recolocação da noção de responsabilidade e a fundação do que alguns autores chamam de vítima virtual[iii].
Os filmes norte-americanos que tematizam a ação da CIA e falo aqui, mais especificamente, dos que constituem a trilogia Bourne: A identidade Bourne: renascido em perigo[iv], A supremacia Bourne[v] e O ultimato Bourne, trabalham de modo bastante peculiar com a noção de responsabilidade. O que observamos na representação – ideológica, naturalmente – da ação da CIA é sua precisão cirúrgica que contempla apenas aqueles que estão muito proximamente envolvidos nas ações da organização. Parece haver uma barreira que estanca a CIA da sociedade, sendo os conflitos entre Bourne e os agentes do novo programa da Agência absolutamente precisos, na medida em que nenhuma vida alheia à trama principal é atingida.
De acordo com resenha publicada no site Cinepop[vi], o roteiro de Tony Gilroy para O ultimato Bourne diverge significativamente do romance homônimo de Robert Ludlum, que tinha como pano de fundo a Guerra Fria. O filme recorre às temáticas conspiratórias e aos programas obscuros do governo americano – de forte apelo popular – mas não os recoloca nos termos contemporâneos que, certamente, contemplariam Guantánamo e a guerra contra o terror liderada por George W. Bush. Nesse sentido, o filme sofre um aparente esvaziamento político. Tal esvaziamento, no entanto, constitui-se como uma estratégia mais ardilosa que suspende a dimensão política de representações dotadas de graves implicações político-econômicas. Aliás, com exceção de uma rápida seqüência de A supremacia Bourne, segundo filme da série, em que Jason Bourne faz uma busca na Internet sobre uma de suas supostas vítimas, Mr. Neski (Yevgeni Sitokhin), e verifica que o assassinato estava ligado às posições anti-privatização do petróleo adotadas pela vítima, a capilarização e complexificação da lógica do capitalismo tardio ficam de fora da trilogia.
A desresponsabilização das camadas médias urbanas, fenômeno que produz um posicionamento generalizado de vitimização, embebido em implicações éticas das mais graves, se dá nesses filmes por uma excessiva ficcionalização. Essas ficções são travestidas de realidade por um lado, através de movimentos de câmera nervosos, quase de cinegrafista amador, que conferem um estatuto de verdade à trama e, por outro, pela montagem excessivamente entrecortada, de dar inveja a qualquer videoclipe, que produz sensações inebriantes e insere o filme no conjunto mais amplo dos “desinteressados” filmes de ação. Junto a isso, acrescentaria ainda, a expulsão daquele que seria principal desencadeador da trama, o que explicaria, de alguma forma, a existência dos programas governamentais obscuros e conspiratórios: a lógica de funcionamento do capitalismo tardio.
Na filmografia brasileira contemporânea, uma série de filmes vem inserindo a polícia como personagem de um maniqueísmo muito pouco sofisticado, que se legitima muitas vezes pelo status de “guerra” urbana[vii]. Cidade de Deus[viii], Carandiru[ix] e hoje, Tropa de Elite, sem falar em uma infinidade de documentários, trabalham com a questão policial, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo. Apesar de o discurso desses filmes tentar, muitas vezes, se articular a partir do lugar do oprimido – não é, obviamente, o caso de Tropa de Elite, mas é o caso, por exemplo, de Cidade de Deus – a produção de figuras “monstruosas” em meio às personagens do lado oprimido do dualismo maniqueísta é freqüente e, aliada à cobertura dos casos de violência urbana pelas grandes mídias, produz demandas sociais por medidas públicas mais autoritárias.
O recurso de produção de identificação adquire papel primordial neste processo de implementação de demandas autoritárias por parte da sociedade. A lógica seria mais ou menos essa: eu me identifico com cada “inocente” de classe média que tem sua trajetória de vida interrompida pelo tráfico/crime organizado, seja em um filme, seja nas coberturas jornalísticas da “violência urbana”, passo a viver minha vida atravessado pela noção de risco e, a partir daí, me coloco na condição de vítima virtual. Na produção desse tipo de fenômeno, que verificamos na reivindicação de redução da maioridade penal quando da morte do menino João Hélio ou na recente ocupação pan-americana do Complexo do Alemão, é fundamental a produção de uma alteridade radical entre o eu, vítima virtual, e o “outro”, o monstro que me submete a um risco que não optei por correr.
Destacadas essas diferenças entre estes produtos midiáticos, não parece radical concluir que, através de diferentes dispositivos, tais produtos produzem (ora pela negação do acesso ao que está em jogo – no caso da “a-política” trilogia Bourne –, ora pela produção de uma experiência do mundo – no caso, a experiência do medo, difundida por essa contemporânea tradição fílmica brasileira –) terrenos sobre os quais não nos sentimos capazes de alicerçar uma sociedade mais justa e igualitária. Mas talvez, esse sentimento de impotência já seja produto desses mesmos discursos.
[i] de Paul Greengrass, ficção, 111’, cor, EUA, 2007.
[ii] de José Padilha, ficção, 113’, cor, Brasil, 2007.
[iii] Cf. VAZ, Paulo; CARVALHO, Carolina Sá ; POMBO, Mariana Ferreira. A vítima virtual e sua alteridade: a imagem do criminoso no noticiário de crime. Revista FAMECOS, v. 30, p. 71-80, 2006.
VAZ, Paulo; CAVALCANTI, Mariana; CARVALHO, Carolina Sá. Vítima virtual e medo do crime no Rio de Janeiro. Trajectos Revista de Comunicação Cultura e Educação, Lisboa, v. 7, n. 7, p. 95-106, 2005.
[iv] de Doug Liman, ficção, 119’, cor, EUA, 2002.
[v] de Paul Greengrass, ficção, 108´, cor, EUA/Alemanha, 2003.
[vi] http://www.cinepop.com.br/especial/ultimatobourne.htm
[vii] Cf. http://oicult.blogspot.com/2007/09/tropa-da-elite-ou-matou-na-favela-e-foi.html
[viii] de Fernando Meirelles, ficção, 135’, cor, Brasil, 2002.
[ix] de Hector Babenco, ficção, 146’, cor, Brasil, 2002.
Icaro Ferraz Vidal Junior (UFF/Observatório da Indústria Cultural)
2 comentários:
Caro Ícaro,
Acho que o esvaziamento político tem ver com a desterritorialização da "guerra ao teor". Os inimigos agora não são somente Estados ou ideologias políticas específicas,mas qualquer ser humano considerado ameaçador pelos padrões dos detentores do capital. Assim, falamos da maioria da humanidade né?
Abraço,
Adriana.
Olá, Adriana,
Concordo que tivemos muitas mudanças com a lógica da guerra ao terror. Mas acho que podemos discutir até que ponto o conflito é realmente desterritorializado, uma vez que podemos observar ações territorialmente muito bem marcadas, como o caso da Guerra do Iraque, por exemplo. Assim, acho que a noção de desterritorialização acaba encobrindo aspectos políticos que estão para além dos sistemas virtuais do capitalismo financeiro e se aplicam a uma realidade imediata e bastante concreta. Quanto aos novos inimigos, que não mais se distinguem a partir de seus Estados ou ideologias, eu concordo, mas acho que existem novas formas de delinear o inimigo como, por exemplo, através da cultura. A associação muçulmano - terrorista parece estar presente tanto na política de segurança norte-americana quanto no imaginário produzido com ajuda de sua indústria cultural. Por fim, concordo que a grande maioria da humanidade não atende às demandas dos detentores do capital, mas suspeito de que se for um branco ocidental as perseguições serão mais brandas. O que acha?
Abraço,
Icaro
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