quarta-feira, 31 de outubro de 2007

A Rede Globo e a apologia à livre iniciativa: superexploração ou “o Brasil da hora extra!”?



O exemplo do episódio de 18 de outubro de 2007 do programa “Profissão Repórter”.


A equipe de reportagem coordenada por Caco Barcelos foi às ruas para entrevistar brasileiros superexplorados em suas jornadas múltiplas de trabalho.


A despeito do quesito cor não ser mencionado em nenhum momento como um dado relevante de investigação, somos apresentados primeiramente a trabalhadores negros que gastam boa parte do dia nos ônibus públicos para se deslocar aos seus locais de trabalho. Um deles, Geraldo, é jardineiro de um condomínio de luxo, ganha R$ 700, apesar da taxa condominial por apartamento ser de R$ 3500. Além disso, vende mercadorias do Paraguai, perfumes e relógios, no transporte coletivo e para os demais trabalhadores do condomínio. Uma doméstica negra, viúva, que dorme na casa da patroa branca, e volta para casa só aos domingos para ver seus filhos, é uma das colegas de Geraldo, e compradora de seus relógios. Os trabalhadores do condomínio são negros, os moradores são brancos, e os patrões desconhecem as dificuldades de sobrevivência dos empregados.


Tudo isso é dito no programa. Mas como? A quantidade de informações orais e imagéticas que o episódio mostra demarca o quadro de desigualdade da sociedade brasileira. Portanto, o programa supostamente enfatiza aspectos de uma estrutura de segregação presente no dia a dia e, por meio de uma equipe de reportagem, tem a pretensão de investigar as táticas de sobrevivência dos alijados do progresso do país. Em princípio, esse foco poderia dar a ver dimensões desconhecidas da organização social brasileira, mas, nossa hipótese é que, sem deixar de mostrar aspectos da realidade, a forma do programa dá a ver um Brasil por um ponto de vista que mostra a desigualdade omitindo os conflitos entre explorados e exploradores.

Essa hipótese só pode ser aventada por conta da experiência em processo do Coletivo de Audiovisual da Via Campesina, e dos estudos dos cursos de comunicação e cultura do MST, em que os padrões hegemônicos de representação da realidade são analisados, critérios de análise são forjados para tal, e experimentos contra-hegemônicos são desenvolvidos. Nesses estudos percebemos como procedimentos estéticos que foram criados em momentos de conflito de classe, pelos trabalhadores, para combater a mercantilização, são utilizados como mercadoria pelos vencedores dos combates, a classe dominante. Ou seja, percebemos que a técnica e suas nuances pode estar a serviço de uma prática emancipatória, que vincule emoção e razão em medida crítica, que informe, conscientize e incite à ação, ou, pode estar a serviço do embotamento dos sentidos, do incentivo à percepção passiva dos problemas sociais, da incitação à saída individual, via crença na livre iniciativa, para problemas de ordem coletiva.

Geraldo é inquerido sobre qual foi a última vez que foi ao cinema. Pergunta que pressupõe que a privação cultural seja um dado episódico na vida do trabalhador. Não, ele nunca foi ao cinema, ele nunca foi à praia, e economiza dinheiro há treze anos para comprar um carro. O jornalista encerra esse quadro com a informação da certeza que os trabalhadores entrevistados têm de que não chegarão à condição de riqueza pelo que obtêm como fruto do trabalho. Lúcidos... E conformados.

A superexploração aparece sem ser nomeada como tal, e o aspecto estruturante da discriminação racial é visível para o telespectador, mas os repórteres em nenhum momento problematizam o fato.

O quadro seguinte mostra a vida de um homem branco do Rio Grande do Sul que cresceu numa família de trabalhadores rurais pobres e conseguiu enriquecer ao montar uma distribuidora de alimentos. Hoje fatura mais de dois milhões por mês. “Ele acreditou, se empenhou e subiu na vida” é a mensagem implícita que subjaz ao encadeamento dos quadros, embora em nenhum momento os repórteres estabeleçam comparação entre os casos do jardineiro negro que não consegue comprar um carro e do agricultor que virou milionário. Por que os negros que aparecem no programa são empenhados, mas não sobem na vida, e por que o branco que trabalhou duro “virou patrão”, como exalta a reportagem?

A situação da desigualdade social é lida por um ponto de vista de classe que:

– suprime o conflito entre beneficiados e espoliados – por exemplo, nos momentos em que os repórteres abordam com humor a diferença de rotina deles se comparada a de seus entrevistados;

– dramatiza a ilusão de saída individual da condição de pobreza explorando os recursos melodramáticos da crença dos “personagens” na livre iniciativa;

– interpreta de maneira racista a dinâmica de mobilidade social entre negros e brancos, ao editar os quadros de entrevistas de modo a consolidar a idéia de que não há alternativa de ascensão para os trabalhadores negros, tendo como contraponto o caso do trabalhador branco que ascendeu por conta de seu próprio empenho.

O quadro com o músico Seu Jorge é o contraponto que poderia desmentir o último argumento elencado acima. É o exemplo de um trabalhador negro que passou por várias profissões desgastantes (borracheiro, pedreiro, porteiro, etc) até decolar sua carreira musical. Não há, também, da parte dos repórteres, nenhuma pergunta que nos faça refletir sobre como e por que um trabalhador negro “chegou lá”. O fato do programa eleger como personagens pobres que ascenderam Seu Jorge, pela via artística, e o trabalhador branco, como empresário, reitera um padrão meritocrático de representação racial no Brasil: juntamente com o esporte, a música é um dos poucos espaços de exibição da ascensão social dos negros. A despeito do esforço individual e vocação de Seu Jorge, seu exemplo, como o de Pelé, Romário, Ronaldinhos e Robinho no futebol, e de Gilberto Gil e Milton Nascimento na música, é representado pela grande imprensa brasileira como uma espécie de barreira de contenção, como um cala a boca aos pobres negros que “não vingaram” – “se eles passaram para o lado de cá, então é porque as portas estão abertas para todos os bons”.

A despeito da situação de superexploração ter dimensão coletiva – o programa informa que mais de 40% dos trabalhadores brasileiros têm jornadas diárias múltiplas de trabalho para conseguir sobreviver –, somos apresentados aos dramas individuais de pessoas da classe trabalhadora, que nos despertam empatia e comoção, como o caso da mãe que tem mais de cinco empregos para pagar a mensalidade de R$ 840 da filha num curso particular de administração de empresas; ou empatia, graça e pena, como no caso do pedreiro cineasta analfabeto, espécie de símbolo pitoresco de uma cidade do interior; ou empatia e compaixão, como no caso do campeão nacional de boxe, jovem negro, que estuda, e trabalha de flanelinha e segurança.

O programa reúne fragmentos de histórias e apresenta informações e dados que tornam explícito o quadro abissal de desigualdade social brasileira. As histórias e imagens incomodam, mas de certa forma o empenho individual dos trabalhadores na luta inglória por sobrevivência reconforta o telespectador, pois a luta diária é feita pelos marginalizados dentro das regras bem dispostas do que é certo e errado. Quando Seu Jorge pergunta para os trabalhadores negros de uma feira numa cidade do Nordeste quais são os seus sonhos, todos os depoimentos que aparecem no programa – como o material foi editado, pode ser que tenham sido registrados outros depoimentos, mas não selecionados – indicam ambições individuais, e nunca coletivas: a camelô sonha em ter uma loja própria, o vendedor que canta sonha em ser reconhecido como cantor, etc.

Seu Jorge é o único personagem entrevistado que também entrevista. A repórter do programa acompanha uma turnê dele pelo país, em que fazem parte do pacote entrevistas do cantor com pessoas de diversas profissões pelas cidades que ele passa. No programa, com o status conquistado de celebridade, ele passa a interpelar seus pares de classe (de origem), e é mostrado como um deles que se diferenciou, que conquistou o poder para falar dos pobres, que conquistou o direito de narrar.

O que o programa omite mostrando, ou mostra omitindo, é o conflito da luta de classes. Em determinado momento, isso acontece de forma irônica, como numa cena de teatro dialético: o repórter pergunta para uma motorista se ela sabe que o flanelinha que cuida de seu carro é campeão nacional de boxe, ela responde que não sabia e conclui com algo como “Que bom, então o meu carro vai estar bem cuidado”. A saída espirituosa explicita a desfaçatez de classe dos proprietários para com seus serviçais, o fato dele ser boxeador campeão não desperta nela o incômodo de ter como seu vigia de carro um campeão nacional, pelo contrário, ela se sente reconfortada por saber dos atributos físicos daquele que vai proteger sua propriedade.

A Rede Globo desenvolveu no decorrer nas décadas de monopólio de mercado televisivo um procedimento técnico de anulação dos conflitos, de diluição das tensões sociais. A técnica de interpelação de Regina Case é um dos melhores exemplos desse procedimento: diante dela todos são bem humorados, a despeito das condições de iniqüidade social. Não à toa a atriz vende qualquer mercadoria: aparece em propaganda de banco, de roupas, de faculdades particulares, etc. O autoritarismo está introjetado na técnica: ela exige felicidade dos desvalidos.

Até porque não poderia esconder as mazelas de um país sustentado pela crueldade de um sistema de mercado, a Rede Globo se propõe há muito tempo a abordar a miséria, ora sob o foco amedrontado dos incluídos vítimas potenciais dos excluídos do mundo do trabalho, ora de forma bem humorada – nesse caso, mantendo sempre o foco nos indivíduos e seus dramas pessoais, nunca focando alternativas de auto-organização popular para resolução dos problemas coletivos como uma possibilidade positiva.

A complexidade do programa, como um dos exemplos de “competência” da grade de programação da emissora, reside no fato dele saber transmitir de forma palatável, bem-humorada, e melodramática a experiência da tragédia social coletiva da população brasileira. O que a Rede Globo trata de forma pitoresca como “a hora extra dos brasileiros” é a energia social dos explorados empenhada na luta pela sobrevivência, sendo transformada em mercadoria vendável, pela mediação ideológica da livre iniciativa, mesmo nos momentos em que ela se mostra mais falsa, como no caso dos tantos Geraldos que aparecem no programa, como exemplo dos que se esforçam, mas não vingam.

Rafael Villas Bôas (MST)
Brasília, outubro de 2007.

2 comentários:

Observatório da Indústria Cultural disse...

Excelente texto Rafael, parabéns! E olha que Caco Barcelos é o que de melhor há na nosa imprensa televisiva e no jornalismo investigativo. Isso nos mostra como romper com esses padrões midiáticos de representação da desigualdade de classes não depende de impulsos individuais, mas sim de uma mudança radical nos próprios meios de comunicação.
Abraço,
Adriana Facina.

Anônimo disse...

QUEM ESCREVEU ESTA MERDA?

A Globo, atualmente, é aliada da Mula (Lulla Mulla) e do explorador de velhinhos (Sérgio Cabral) e o PAC é somente um Plano de Aceleração da Corrupção para pegarem dinheiro.

Acimentar becos e manter os pobres nas favelas (senzalas) para continuar a servir a elite é tudo que a Globo quer?

O que o Povo precisa é bairros dignos com casas dignas, com ruas dignas, com escolas completas e integrais, com postos de saúde, com delegacias em cada bairro; que cada bairro digno tenha um Centro de atividade para as crianças e adolescentes, outro para a terceira idade; vilas olímpicas, comércios, transportes, um Centro de Administração Comunitária para abrigar a Associação de moradores e outros conselhos...

CHEGA DE FAVELAS, PORRA!!!

CHEGA DE TRÁFICOS!

CHEGA DE CRIANÇAS LEVANDO CASCUDOS MORRO ACIMA E OU LADEIRA ABAIXO OU DE MANGUE ADENTRO PARA SERVIR A TODOS NO SEXO, NO TRÁFICO, NA MENDICÂNCIA, COMO ESCUDOS...EM CURRAIS ELEITORAIS ESS 'ESQUERDA' BANDIDA QUE SE TORNOU O PT!

ACORDEM PETISTAS, SAIA DO DOMÍNIO DE EX-BANDIDOS ANISTIADOS!

Comé?
http://nhenhem.blogspot.com/