sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Do Corpo à alma de uma raça


Na noite de 15 de novembro de 1938, segunda comemoração da proclamação da República sob o Estado Novo, onde estava Getúlio Vargas? A resposta é inesperada: o presidente estava sentado numa poltrona, comendo pipoca numa sala de cinema. Era estréia de ALMA E CORPO DE UMA RAÇA[1] e, como bom nacionalista, o presidente não podia perder, ao lado de sua mulher e do Ministro Gustavo Capanema, a primeira película realizada sobre o futebol do Flamengo (na época a seleção brasileira era formada por jogadores deste time e do Fluminense, o famoso Fla-Flu). O dia 15, além de data nacional de grande importância é também, curiosamente, o aniversário da fundação do Clube de Regatas Flamengo.

A trama do filme é simples: Luizinho é filho do maior jogador de futebol do Flamengo e tem o objetivo de ser tão bom quanto o pai já falecido. Ainda quando criança conhece Maria Helena, menina rica e simpática, e dela é separado quando da ida desta à Europa. Ao voltar, Maria encontra Luizinho homem feito, estudante de medicina e grande jogador de futebol. Forma-se, então, um triângulo amoroso, pois a família de Maria prefere que ela se case com Rubens, também atacante do Flamengo e médico já formado, só que proveniente de uma família rica. Ela acaba por dizer que fica com o jogador que fizer mais gols na final do campeonato brasileiro. Rubens acaba por perceber que não é dono do coração de Maria, deixando Luizinho jogar como pivô e capitão do time em seu lugar..

É interessante notar que os filmes da Cinédia nos anos 30 – produtora que almejava uma industrialização do cinema brasileiro que seguisse os padrões hollywoodianos – variavam do musical ao melodrama, e este último gênero era repleto de aparências aristocráticas como, por exemplo, o romance do casal no jardim da mansão, a menina que volta de Europa depois de anos, o piano e a música clássica, as conversas de salão.

E temos no filme aqui tratado, paralelamente a este ambiente aristocrático, montagens de cinema documentário, corpos que se desenvolvem remando na lagoa, ruas cariocas já cheias de automóveis, paisagens bucólicas e exercícios físicos diversos encadeados em seqüências de passagem de tempo – seqüências que nos lembram OLYMPIA [2], da famosa obra de Leni Riefenstahl, expoente da cultura nazista. Portanto, há um paralelismo entre um Rio de Janeiro antigo e outro moderno ao mesmo tempo, em níveis de ficção e documentário respectivamente.

Realizado para arrecadar fundos para a construção do estádio do Clube de Regatas Flamengo (que até hoje marca presença ali no Lagoa-Barra), ALMA E CORPO DE UMA RAÇA não titubeia quanto a seu tema: a ascensão social através do esporte e da disciplina do corpo. A tese é que através do exercício físico o intelecto também se desenvolveria, fazendo com que Luizinho adquirisse seu diploma e defendesse uma tese interessante para tomar posse da cadeira de medicina. Nela pretende provar que a saúde física é produto do meio, e que a falta de saneamento básico e de educação (física e intelectual) são os principais males de uma sociedade que ainda sofre de má saúde. O corpo trabalhado é aqui defendido como a base para a criação de uma sociedade virtuosa e bela, ou seja, para a ascensão de uma nova tradição não mais aristocrática porque não mais fechada a um corpo que deve se desenvolver dentro de seus quartos fechados, mas sim um corpo que deve respirar ar puro e arar uma alma empreendedora e não acumuladora de capital. Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde, e nosso querido presidente Vargas, para quem o filme parece ter sido feito, aprovaram.

Há um elogio a uma determinada concepção do corpo – tomada de empréstimo da antiguidade clássica –, concepção esta relacionada ao ideário nazi-fascisa. Acredita-se aqui que um aperfeiçoamento físico nos levaria a um aperfeiçoamento moral. O homem forte é, logo, conhecedor do real porque virtuoso, maleável. Corpo são: mente sã. E aquele que é virtuoso – ou seja, aquele que tem a capacidade de se adequar às vicissitudes de seu tempo de acordo com o conhecimento da realidade – é também bom, pois tem o senso de dever para com a Nação e o bem-estar social. E daí chega-se à última verdade (tão socrática): o homem forte, virtuoso e bom, é o homem feliz por excelência, pois alcança o desejado e sabe qual é a verdade. A fórmula, um tanto escabrosa, é a seguinte:
Disciplina = força maleável = virtude = sabedoria (conhecimento da verdade e das boas normas) = bondade = felicidade.

O corpo fascista, portanto, está intrinsecamente relacionado ao ideal de cidadania, pois, para ser cidadão – o que quer dizer trabalhador, sujeito político com direito a voto, e guerreiro – o homem deve ser disciplinado. E se notarmos bem, esta tese ainda é bastante presente quando vemos inúmeras propagandas defenderem o esporte como forma de ascensão social e de educação que afasta nossas crianças das drogas e da violência. A diferença fundamental está na falta, ns dias de hoje, da crença numa unidade racial. Já no filme, Luizinho é pardo, mas a palavra raça não aparece nenhuma vez em sua duração, sendo implicitamente tratada como tema, principalmente quando percebemos uma forte coesão social estabelecida em torno do esporte coletivo em que predomina o espírito de grupo e de nacionalidade.

Há como perceber também a justaposição de três ou quatro discursos acerca do corpo reproduzidos nos filmes da época, discursos que realçavam ou negavam aspectos diferentes relacionados a diversas sensibilidades ou projetos culturais em disputa.

De um lado em BONEQUINHA DE SEDA[3] (Cinédia, 1936), temos o elogio ao corpo aristocrático, onde um simples movimento de mão nos dá uma referência da classe social a que pertence um corpo específico. Aqui a ascensão social se dá, não através do esporte, mas através dos salões da alta sociedade, tratando-se de uma classe pouco acostumada a ir à praia ou a praticar esportes populares, pois o ideal estético ainda está muito preso a uma tradição européia francesa, vigente na época imperial.

Em oposição a este corpo temos o do galã de Hollywood, moderno, forte ao mesmo que branco e de um sorriso inocente (ainda não temos a figura do galã sombrio e um tanto deprimente de Humphrey Bogart[4] e, menos ainda, de James Dean[5]). Não sendo uma figura tão presente nos anos trinta do cinema brasileiro, invadirá as telas quando da política de boa vizinhança nos anos 40, evidenciando uma mudança cultural significativa quanto aos cânones importados pela cultura brasileira (desempenhando este papel teremos Cill Farney[6] e Anselmo Duarte[7] nos anos 50).

E entre o corpo considerado conservador (fechado em suas mansões) e o corpo liberal (desempenhado por jornalistas e policiais, profissionais “da rua”), aparece o corpo disciplinado pelo Estado. Portanto, duas educações corporais aparecem nos filmes dos anos 30 no Brasil: a aristocrática e a esportiva (estatal). Entre as duas há uma transição notável entre o homem desocupado, nobre ou vagabundo, e o homem trabalhador, que será bastante evidente quando dos filmes produzidos pelo INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo) – fundado em 1937 por Getúlio Vargas, dando início ao período do Estado Novo nas telas do cinema.

Há, porém, um quarto corpo que acaba por quebrar as regras impostas pelas culturas dominantes, invadindo as películas junto ao carnaval e ao cinema sonoro (vide filmes como ALÔ ALÔ CARNAVAL[8], 1936, e ESTÁ TUDO AÍ[9], 1939). O corpo grotesco ao mesmo que extremamente musical (sincopado) – de Oscarito, Mesquitinha e até mesmo de Francisco Alves – é chocante ainda hoje, tão acostumados que estamos a sujeitos belíssimos povoando as telas do cinema. Este corpo, que é típico da era do rádio (pois a beleza não contava para os cantores da época, não havendo ainda o detector de defeitos físicos chamado televisão), associado a piadas de alto teor sexual, parodiava a cultura americana cada vez mais importada, operando inversões carnavalescas onde o vagabundo tornava-se rico, onde o brasileiro falava inglês na maior desnaturalidade, onde o homem se vestia de mulher, e assim por diante. Mas este cinema não suportará as críticas do Estado Novo a tudo aquilo que não tecesse elogios ao trabalho, e permanecerá um tanto quanto acanhado até o final dos anos quarenta quando da expansão da Atlântida Cinematográfica – mas esta é outra história.

Percebe-se que há bastante ênfase em diferenças de corpo e comportamento relacionadas a diferentes classes sociais – a plebe grotesca, o aristocrata fino, o burguês forte que trabalha para o Estado e que, depois da Era Vargas, se liberaliza. Mas, mesmo assim, em praticamente todos os filmes da época, a elite rígida acaba por humanizar-se no final (devendo passar a apreciar novas artes, como o futebol, o samba e, até mesmo, a macumba) e o povo, inocente ao mesmo que horripilante de tão grotesco, deve ser racionalizado (disciplinado pelo esporte, por comportamentos aristocráticos ou temperados). Os conflitos entre classes diluem-se numa cultura populista, ou seja, romântica (humanizada) para com a elite, ao mesmo que iluminista (racionalizada) para com o povo, modernizante (expondo a construção de novos estádios e o avanço das rodovias), ao mesmo que arcaizante (com a permanência de mansões luxuosas e de matutos inocentes)[10].

E em ALMA E CORPO DE UMA RAÇA temos tudo isso: a ficção (aristocrática, desocupada e inútil, nos dizeres do documentarista Dziga Vertov[11]) é invadida pela documentação racionalizada do real, dos corpos em movimento e disciplina (o filme é um inovador semi-documentário e possui 80% de não-atores em seu elenco). As imagens do Rio antigo e dos corpos mecânicos trabalham como índices de uma modernização racionalizada que se manifesta paralelamente à permanência de um passado aristocrático – em oposição à modernização excludente e desigual retratada em outros filmes da época (como ALÔ ALÔ CARNAVAL).

Tudo isso se desenvolve na película de duas maneiras, no enredo e na estrutura formal do filme: quando do amor entre Luizinho e Maria Helena, penetração da classe baixa na classe alta (ascensão social) – que aqui só é tornada possível quando da defesa de sua tese em medicina, possibilitada esta pelo seu ótimo desempenho como jogador no Flamengo –, e quando do exterior documental penetrando o interior ficcional.

A película é trabalhada entre o documentário pedagógico de propaganda e o melodrama que trata de um amor entre personagens desiguais. A fotografia de Edgar Brasil cai como uma luva neste sentido, pois o homem que fora o maior fotografo de paisagens em LIMITE[12] (1930) de Mário Peixoto, já passara por uma bem sucedida experiência de estúdios em BONEQUINHA DE SEDA (1936).

Rogério Sganzerla divide, em seu livro Por um cinema sem limite[13], os filmes do corpo e os filmes da alma, para depois falar dos que são do corpo e da alma. No caso aqui explicitado temos um filme que parte do documentário para chegar ao icônico, vai do índice de uma realidade particular, do futebol e dos corpos disciplinados, à alma, à virtude moral, ao ícone generalizante e, no caso, profundamente nacionalista.

Uma fórmula perfeita para o Estado Novo: a mescla do índice de realidade (que trabalha com uma moral racionalista desenvolvida pelo Estado Nacional da época), e o ícone generalizante (que trabalha com o amor melodramático, nunca trágico, e com os padrões hollywoodianos vigentes na época – os cenários art-decó, etc). Mescla de documentário e ficção, esta produção da Cinédia tornou-se logo molde do que viria a ser produzido pelo INCE devido à sua forte inserção no real, ao seu caráter pedagógico e civilizador.

A indústria cultural evidenciava seu papel civilizador quando aparecia assim, guiando a massa com toda sua potência pedagógica. O final do filme é cheio de bandeiras brasileiras, e não do Clube de Regatas Flamengo, e o Hino Nacional marca o ritmo dos passos em marcha, deixando claro o papel que o esporte e o cinema têm como cooptação e racionalização modernizante das massas. Pois é, “uma vez flamengo, sempre flamengo”.

[1] de Milton Rodrigues, semi-documentário, 75’, p & b, Brasil, 1938.
[2] de Leni Riefenstahl, documentário, 204’, p& b, Alemanha, 1938.
[3] de Oduvaldo Vianna, ficção, 115’, p & b, 1936.
[4] ator de Hollywood dos anos 40, ficou conhecido por seu charme nos filmes noir (de detetive).
[5] ator de JUVENTUDE TRANSVIADA e VIDAS AMARGAS, filmes pioneiros quanto à temática adolescente.
[6] principal “mocinho” dos filmes da Atlântida (O HOMEM DO SPUTNIK e outros).
[7] galã da Atlântida e da Vera Cruz, também dirigiu O PAGADOR DE PROMESSAR.
[8] de Adhemar Gonzaga, musical, p & b, Brasil, 1936.
[9] de Mesquitinha, filme carnavalesco, p & b, Brasil, 1939.
[10] CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência – Aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986.
[11] documentarista e montador soviético associado ao futurismo e à condenação dos filmes de ficção.
[12] filme mudo de Mário Peixoto, drama, p & b, Brasil, 1931.
[13] SGANZERLA, Rogério. Por um cinema sem limite. São Paulo: Azougue Editorial, 2001.


Lucas Parente (UFF/Observatório da Indústria Cultural)

Um comentário:

Anônimo disse...

Como posso adquirir o filme Alma e corpo de uma raça. Existe comercialmente para ser comprado.


Luiz


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