quarta-feira, 10 de outubro de 2007

A contribuição das ONGs – A favela como mercadoria


O filme de Sérgio Bianchi Quanto vale ou é por quilo? promove uma importante discussão sobre o papel desempenhado pelas ONGs na nossa sociedade e tenta fazer de forma bastante ácida e corajosa a denúncia do funcionamento dessas organizações. Em certos momentos, o discurso é bastante direto e os textos, como o do personagem de Lázaro Ramos (um presidiário consciente de sua condição miserável e injusta, na cadeia superlotada), proporcionam verdadeiros embates. Em determinado momento o personagem olha para a tela e fala direto para o espectador, num distanciamento da ficção que promove imediatamente uma quebra de atenção que não permite que fiquemos simplesmente numa situação passiva, vendo o problema, mas somos provocados à reflexão. O texto é forte e explicitamente contestador:

“Esse é o nosso navio negreiro. Dizem que a viagem era bem assim, só que ela só durava dois meses e o principal: o navio ia terminar em algum lugar. Na escravidão a gente era tudo máquina, tudo máquina! Aí eles pagavam combustível e manutenção pra que a gente tivesse saúde pra poder trabalhar de graça pra eles. Agora não. Agora é diferente. Agora a gente é escravo sem dono. Cada um aqui custa setecentos paus pro Estado, por mês. Isso é mais que três salários mínimos. Isso diz alguma coisa sobre esse país. O que vale é ter liberdade pra consumir. Essa é a verdadeira funcionalidade da democracia!”

Dentre tantos assuntos abordadas no filme como, por exemplo, os desvios de verbas e lavagens de dinheiro, a utilização de pessoas honestas e humildes como “laranjas” sem que essas desconfiem, e até a possibilidade de se encomendar a morte daquele que por ventura possa vir a atrapalhar ou querer denunciar os esquemas, duas questões em especial chamam a atenção e essas são especificamente da ordem do lucro e da exploração na sua forma mais cruel. Estas estão inseridas numa relação de afeto e de laços pessoais que se por um lado proporciona riquezas para aquele que faz o “bem”, por outro torna o beneficiário amarrado ao primeiro e escravo da gratidão. Gera, assim, uma dependência em função de favores que na verdade não resolvem os problemas desses que realmente necessitam de mudanças estruturais em suas vidas.

A primeira questão é a relação histórica dessa troca de favores e o filme brilhantemente se utiliza de registros históricos, ou seja, de fatos verídicos, para fazer o paralelo da continuação desse tipo de procedimento nos dias atuais. Há uma comparação com essas relações de dependência na época da escravidão, em que senhores, por vezes, se colocavam numa condição paternalista ao proporcionar determinada ajuda ao escravo, sendo que em contrapartida aquele acabava ganhando não só a gratidão do cativo. Por traz disso sempre havia, nos exemplos do filme, mecanismos que proporcionavam lucros ao “bem feitor”. A tese do filme é de que tais relações se perpetuaram de tal forma que a atuação das ONGs, hoje em dia, seria a continuação dessa lógica. Ou seja: ajuda fácil, pra quem proporciona, em troca de lucros. Seja em dinheiro ou em serviços prestados.

A segunda questão e que diz respeito muito às características empresariais do século 21 é a forma como os empresários do filme, retratando bem os da vida real, conseguem enxergar um diferencial na pobreza tornando-a uma mercadoria extremamente rentável.

Em Quanto vale ou é por quilo?, especificamente, a estratégia de exploração da pobreza se dá no campo do marketing. Empresas que se preocupam com o bem social ou com o meio ambiente, além de ganhar prêmios que são distribuídos em eventos de altíssimo nível, extremamente elitizados, regados a coquetéis caríssimos, como bem mostra o filme, tornam-se exemplo de como ajudar aos outros e ainda contribuir para a economia do país. Ficam mais conhecidas, ganham respaldo perante a sociedade, abatem os gastos sociais nos impostos e, naturalmente, na hora de vencer a concorrência, tais iniciativas ditas sociais se convertem em alguns pontos a frente na disputa por um eventual cliente. Uma cena marcante diz respeito a uma reivindicação de uma líder comunitária que foi reclamar junto a um empresário o fato de terem sido doados computadores de péssima qualidade, quando na verdade tinham sido prometidas máquinas melhores. Acusando-o de desvio de verbas públicas, a mulher ouve do empresário que muitas pessoas, independentemente da qualidade das realizações, só sobrevivem por causa dessas iniciativas e que, sendo aquilo uma empresa, o que importava, de fato, era aumentar o número de projetos realizados.

Atenho-me, pois, a uma outra vertente da exploração da pobreza, que também se utiliza de marketing, mas não da mesma forma como a retratada no filme. Venho sugerir uma análise dos projetos culturais em favelas que se propõem a formar grupos de música ou teatro, ou qualquer outra modalidade artística, com o discurso de salvar vidas. Para começar, não acredito que a arte por si só salve vidas. O que salva vidas é a consciência crítica do mundo e do seu papel na sociedade. Tal feito pode também ser conseguido através da arte - ou não - e ela pode ser utilizada como um instrumento de intervenção na sociedade. Não é o que tais organizações, como o Afroreggae de Vigário Geral, propõem. A lógica que move tais projetos está imbuída de um certo individualismo que se configura nos produtos lançados por estes grupos. No caso específico do Afroreaggae, que nasceu em um local marcado por uma terrível tragédia - a chacina de Vigário Geral -, hoje ela não se compromete com criações artísticas que estejam engajadas numa luta pela reivindicação de melhores condições de vida nos morros e, em épocas de “Caveirão”, numa iniciativa contra a violência sofrida pelos moradores de favelas. Trata-se, pois, de um enquadramento por parte desses grupos na lógica do sistema capitalista que se expressa na indústria cultural. A música do grupo não se propõe a um compromisso mais crítico e as excursões para fora do país significam um status alcançado devido à conformação. O projeto se caracteriza em tornar artistas respeitáveis aqueles que fazem parte do grupo, pouco importando o restante da comunidade que continua passando pelos mesmos problemas anteriores, mas isso já não mais importa. O repertório de músicas comerciais e até recheada de um batuque bonito, visualmente instigante por causa dos malabarismos não significam nada mais que isso, não se comprometem com uma discussão mais aprofundada. O assunto se torna ainda mais sério, se pensarmos na esperança criada em vão nas crianças que acham que vão se tornar artistas famosos de televisão só porque estão participando de uma oficina de capacitação cênica.

O fato é que uma causa mais contestadora não faz parte desse tipo de projeto. Sequer existe causa. O que promove o sucesso de organizações dessa ordem são as características da mercadoria. O fato de o grupo ter nascido após uma chacina e de ser oriundo de uma famosa favela do Rio de Janeiro torna-se um diferencial enquanto produto da indústria cultural. Explora-se essa característica e encontra-se um mercado receptível ao tema. Sabe-se do interesse nas favelas cariocas, inclusive do interesse internacional, por causa das Escolas de Samba e da própria história do samba, sem contar que é extremamente vendável a emoção gerada por jovens que conseguem abandonar o tráfico ou escapar de uma possível entrada, devido a uma arte que ainda proporciona melhorias no padrão de vida dessas pessoas.

Trata-se, portanto, de uma exploração mais disfarçada, mais que continua sendo exploração, pois começa-se a ganhar dinheiro a partir deste rótulo e inúmeros produtos são lançados com esse intuito: shows de música, dança, teatro, cujo o discurso se caracteriza pela possível inclusão social, mas que na verdade beneficia a um número muito reduzido, sem de fato promover ou se buscar uma mudança mais significativa no quadro da miséria das favelas e da sociedade como um todo. Ao invés de lutar por uma democratização dos espaços de arte, esses grupos tem como meta ir se inserindo no sistema, buscando espaços em programas de televisão e no circuito fechado, procurando atuar de forma acrítica em eventos que servem à lógica das elites e que são extremamente demagógicos, como é o caso do “Criança Esperança” organizado pela Rede Globo, que conta com a participação de artistas contratados da casa ou que estão em evidência nas paradas de sucesso.

A qualidade de favelado, no entanto, para além de contribuir no sentido de conseguir espaço em eventos como estes, favorecem a distorção da realidade e a ideologia dominante que fabrica a opinião de que todos nós temos que fazer a nossa parte, retirando do Estado o ônus de arcar com a responsabilidade de garantir a todos o básico para se viver com dignidade. Cabe, desta forma, às ONGs e à iniciativa privada darem as suas contribuições, promovendo o “bem” na sociedade e, com isso, ganharem rios de dinheiro, se valendo da miséria ocasionada pela imensa desigualdade social e pelas lacunas desse Estado que não cumpre com os seus deveres para com a população.

“O que que a periferia leva... o que que a comunidade leva com esses seus ‘empreendimentos comunitários’, hein? O que que a gente ganha? Qual é a nossa parte no seu lucro”.
Presidiário interpretado por Lázaro Ramos.



Pedro Henrique Nunes (UFF/Observatório da Indústria Cultural)

2 comentários:

Anônimo disse...

As ongs não são nada mais(salvo algumas exceções) do que uma continuação do estado,mas disfarçando independência, camuflando uma causa social para abocanhar o dinnheiro do estado.

Unknown disse...

melhor resenha que li sobre o filme, meus parabéns, Pedro!!