terça-feira, 16 de outubro de 2007

“Cara de um, focinho do outro”: as armadilhas das representações coletivas no filme Tropa de Elite


Enquanto a polêmica em torno de Tropa de Elite rende cada vez mais espaço na mídia, um detalhe vai passando despercebido nas análises realizadas por jornalistas e acadêmicos: a semelhança do rito de passagem do policial Matias, do referido filme, com o do “bandido” Mané Galinha, de Cidade de Deus, e de outros chefes de tráfico de drogas do Rio de Janeiro.


Resumidamente, o rito de passagem seria o processo pelo qual o indivíduo, ao mover-se de uma situação social para outra, recebe aceitação e reconhecimento. No caso de Matias, de Tropa de Elite, existe claramente um período em que ele é um meganha pouco talentoso e hesitante (dividido entre a polícia e a advocacia) e outro no qual se torna um policial digno do BOPE – ou seja, um policial matador de favelados, no melhor estilo “faca na caveira”.


Também é possível observar um antes e um depois na história de Mané Galinha, de Cidade de Deus. Na primeira parte do filme, Mané é um pacato trocador de ônibus, que aconselha os jovens a não se envolverem com coisas erradas, e gosta de ir ao baile no fim de semana para dançar com os amigos e encontrar sua namorada. Já na segunda parte, surge nas telas um homem de pontaria certeira, que assalta bancos para armar a quadrilha de traficantes a que pertence e comete assassinatos em série.


O que as histórias de Matias e Mané Galinha têm em comum, apesar de um ser policial (ainda por cima do BOPE) e o outro traficante? Os dois personagens transformam-se em assassinos possivelmente frios e reproduzem práticas creditadas ao banditismo social para vingar a morte de amigos ou parentes estimados. Em outras palavras, ambos acusam em seu rito de passagem a dor causada pela perda de entes queridos, decorrente de homicídios praticados por traficantes tidos como desumanos e amorais. Assim, a violência que passam a perpetrar é plenamente legitimada, à medida que são ações motivadas pelo desejo de justiça, ainda que com as próprias mãos; o julgamento pelas leis do Estado não seria conveniente a bestas-feras.


Em Tropa de Elite, o comportamento de Matias começa a mudar – e se amoldar à filosofia do BOPE – após a morte de seu amigo de infância Neto, assassinado por engano ao levar um par de óculos a uma criança favelada, numa emboscada armada para vitimar o primeiro. Já em Cidade de Deus, Mané Galinha entra para a gangue de Sandro Cenoura e vira um traficante de renome depois que Zé Pequeno – um negro portador de uma maldade biológica – estupra sua namorada (uma morte simbólica), chacina a sua família e o obriga a ficar nu em público.


As representações presentes em Tropa de Elite e Cidade de Deus não são exclusivas desses filmes, é claro. Elas aparecem em depoimentos de moradores de diversas favelas do Rio de Janeiro[1]. Não deixa de ser curioso que o rito de passagem do policial do BOPE siga a mesma estrutura da construção social dos “bandidos” justos. Segundo as narrativas populares, homens essencialmente bons entrariam para o chamado mundo do crime motivados pelo desejo de justiça ou de vingança da honra ferida. Convertidos para uma nova vida marcada pela violência, os seguidos assassinatos cometidos pelos “bandidos” justos são geralmente vistos como necessários ou corretos pelo micro-grupo sócio-cultural a que pertencem. Assim como é justificada a ação de Matias no sentido de pulverizar a cabeça do traficante Baiano, ao utilizar uma arma que mataria um elefante para estragar o velório desse último e vingar a morte do seu grande amigo. A escolha entre matar ou não jamais foi colocada no filme e parte da grande imprensa não sentiu falta dessa possibilidade. Os jovens que vão ao cinema para cantar “caveira, caveira!”, e louvar seus novos heróis urbanos, também não.


O diretor José Padilha vem comentando a identificação do público com os policiais matadores e o problema ético de o protagonista-herói ser um assassino de farda e torturador. No programa “Entre Aspas”, da Globo News, afirmou que a recepção depende dos valores de cada expectador, questão sobre a qual ele nunca terá domínio. Uma resposta simplista, bem ao gosto das discussões travadas na mídia, que colocam o filme como “revelador”, “verdadeiro” e “um soco no estômago da sociedade”. O comentário do cineasta é reducionista porque as obras artísticas costumam ter “protocolos de leituras”, que são senhas implícitas ou explícitas destinadas a garantir uma leitura correta pelo público ou o significado pretendido pelo autor[2]. Em Tropa de Elite, tais protocolos estão presentes na expressiva humanização dos membros do BOPE – os quais, aliás, cometem repetidas infrações aos direitos humanos – e na legitimação da violência promovida por Matias, sugerida pelo seu rito de passagem.


Devemos lembrar ainda que a leitura individual de um filme está apoiada em uma seqüência de práticas articuladas umas às outras, sendo bem mais do que um ato autônomo, que tem a si mesmo como fim[3]. Logo, a representação das favelas como territórios das “classes perigosas” reproduzida em Tropa de Elite atua em conjunto com as reportagens da imprensa escrita e dos telejornais – que deslocam um aspecto do cotidiano desses espaços, a violência, e criam, pela repetição, uma realidade de acordo com categorias de percepção próprias dos profissionais de tal área. José Padilha lava as mãos e afirma que a sua intenção foi apenas acrescentar à história do cinema brasileiro a visão da polícia sobre a criminalidade pública. Ao que podemos questionar: neutralidade existe? O elogio à imparcialidade, em um contexto de guerra aos pobres na mídia e nas relações sociais – e, mais amplamente, de derrota da proposta do desarmamento da sociedade – convence apenas os entusiastas da abordagem simplista da violência urbana promovida pelo diretor – os quais, pelo menos (ou ironicamente), tomaram partido.


[1] ALVITO, Marcos. As cores de Acari. Uma favela carioca. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2001. pp. 235-246.
[2] CHARTIER, Roger. Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. pp. 95, 96.
[3] ibid. p. 87.


Rômulo Mattos (UFF)

5 comentários:

Bruna Aarão disse...

Vi o filme e fiquei perplexa da forma que o problema de corrupção dos policiais, o trafico de armas e também o de drogas podem ser tratados de forma tão simplória. Fico triste e chocada, pois, assisti o filme com outras pessoas, estas aplaudiram atitude do BOPE e falavam que o que está faltando é uma força policial deste tipo para acabar com a criminalidade.
Ai eu fico pensando será que o problema de criminalidade seria resolvido com esta força opressora como foi retratado no filme?
Eu penso que não, acho que o problema é muito mais grave do que o apresentado no filme. Desarmar os traficantes só seria um passo, existe também o problema da educação, a questão da integração social, da desigualdade social e também uma histórica segregação racial. Estes fatores além de outros que não estou lembrando no momento precisam ser levados em considerações antes de pensarmos que o BOPE seria a melhor solução levando em consideração que eles torturam e matam e até onde eu sei de política pensando em Brasil pena de morte e tortura são processos proibidos.

Unknown disse...

Parabéns pelo texto, principalmente pela parte final, que responde os comentários que o diretor vem fazendo em diversas entrevistas. É muito fácil fazer um filme que mostra a “realidade” e colocar o mérito da interpretação ou da ação que ele tem sobre os espectadores nos indivíduos que o vêem. Infelizmente, não temos visto muitos textos na mídia e mesmo nos meios críticos ao filme, com argumentos sólidos como este. Talvez porque ninguém tenha se debruçado sobre o filme para fazer uma análise minuciosa que mostre quais valores são atribuídos a agentes sociais como o BOPE, a “sociedade civil” (representada basicamente pela classe média alta), a PM comum, os favelados, os traficantes e etc.

alma rubra disse...

Excelente texto. Também escrevi um comentário sobre o filme em meu blog: aristoteleslima.uniblog.com.br
Faço um tipo de análise que destoa um pouco da maioria das análises feitas, principalmente daquelas que interpretam o sucesso do filme com uma suposta direitização da população.

Anônimo disse...

'de derrota da proposta do desarmamento da sociedade'

hahaha, o sujeito acha que o desarmamento civil é para causar bem estar social, quanta burrice impera nas universidades brasileiras, ou má fé mesmo, pois se bobear está ligado aos grupos que se beneficiaraim do desarmamento(PT à frente).

Anônimo disse...

se beneficiariam, corrigindo.