segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Sobreviver e sonhar: reflexões sobre a cultura no Complexo do Alemão



Adriana Facina (antropóloga, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ)


Numa entrevista concedida por Raphael Calazans para a equipe de pesquisa Mapeamento da Produção Cultural e das Práticas de Letramento no Complexo do Alemão, coordenada por mim, o MC fala em cultura de sobrevivência para explicar o que é a cultura no Alemão. Assim, mais do que expressões artísticas específicas, a cultura envolveria modos de vida permeados de solidariedade e de estratégias para garantir direitos e acessos aos benefícios da modernidade, como luz elétrica, água encanada, internet e TV a cabo. A criação artística não pode ser separada disso, pois ela é criada pelos mesmos valores e elabora simbolicamente práticas cotidianas do chão dos becos que se tornam matéria-prima da criatividade. Segundo o MC, é desse ponto de partida que se pode compreender o grafite, o samba, o funk etc.


Sua formulação é muito próxima a de Homi Bhabha, intelectual indiano que se dedicou a pensar cultura e pós-colonialismo. Vejam o que diz Bhabha:






“Nesse sentido salutar, toda uma gama de teorias críticas contemporâneas sugere que é com aqueles que sofreram o sentenciamento da história – subjugação, dominação, diáspora, deslocamento – que aprendemos nossas lições mais duradouras de vida e pensamento. Há mesmo uma convicção crescente de que a experiência afetiva da marginalidade social – como ela emerge em formas culturais não-canônicas – transforma nossas estratégias críticas. Ela nos força a encarar o conceito de cultura exteriormente aos objets d’art ou para além da canonização da “ideia” de estética, a lidar com a cultura como produção irregular e incompleta de sentido e valor, frequentemente composta de demandas e práticas incomensuráveis, produzidas no ato da sobrevivência social. A cultura se adianta para criar uma textualidade simbólica, para dar ao cotidiano alienante uma aura de individualidade, uma promessa de prazer. A transmissão de culturas de sobrevivência não ocorre no organizado musée imaginaire das culturas nacionais com seus apelos pela continuidade de um “passado” autêntico e um “presente” vivo – seja essa escala de valor preservada nas tradições “nacionais” organicistas do romantismo ou dentro das proporções mais universais do classicismo.” (O local da cultura, p.240-241)


O que existe de comum entre as experiências culturais produzidas e vividas nas favelas cariocas e as dos povos que foram subjugados mais diretamente ao colonialismo imperialista? Responder a essa questão significa refletirmos sobre os sentidos da cultura. O processo de subalternização de povos, classes sociais, etnias, gêneros sempre envolve elaborações culturais que permitem hierarquizar simbolicamente formas de vida, produções estéticas e valores éticos. O Outro é constituído por ausência: selvagens, bárbaros, incivilizados, sem cultura ou portadores de culturas inferiores. Caberia aos civilizados disseminarem seus modelos de interação social e de produção de cultural para o resto da humanidade, num processo de enquadramento permeado de violência simbólica. Nessa lógica, as crianças argelinas, no período da dominação francesa, liam nos livros de História frases como “nossos antepassados, os gauleses...”. Proibidas de falar a sua língua, o árabe, e com sua história apagada nos bancos escolares, elas eram preparadas para aceitar a superioridade francesa e a buscar um lugar subalterno no arranjo imperialista.





Felizmente, por mais avassaladores e violentos (simbolicamente e de fato) que sejam esses processos, as resistências são múltiplas e impedem que a subordinação seja absoluta. Do mesmo modo que a cultura serve para submeter e exercer a violência simbólica, para marcar distinções sociais, como diria o sociólogo Pierre Bourdieu, ela também permite a construção de memórias e identidades outras, demarcando diferenças como afirmações positivas de dissidências políticas, subjetivas, existenciais, culturais. A cultura surge como recurso acionado para produção de contra-hegemonias emancipatórias, permitindo colocar em perspectiva, relativizar e se contrapor ao discurso hegemônico, com seus valores cristalizados e suas naturalizações.


As favelas cariocas sempre foram palcos de múltiplas intervenções do Estado que buscavam, seja pelo meio explícito das remoções, seja por mecanismos mais sutis de aculturação, desfavelizar a cidade. Como os povos colonizados, a favela também era e é vista como lugar da barbárie, da ausência de tudo, incluindo cultura, como incivilidade. Seja nas representações midiáticas criminalizantes que equacionam favela = lugar do crime, lugares onde não se deve ir. Seja nos discurso de ONGs e afins que buscam “levar a cultura para a favela”, geralmente relacionando cultura a formas artísticas canônicas e tratadas de maneira desterritorializadas. É o balé na favela domando os corpos produzidos nas infinitas belezas da diáspora negra. É o violino na favela enquadrando musicalidades deslegitimadas. É o tambor na favela como promessa de acesso a uma vida de artista entendida no sentido mais burguês e conformista do termo. O que falta aí é a percepção da favela como produtora de culturas. Culturas essas expropriadas pelas elites sem que se dê nada em troca, como diz Veríssimo Júnior. Esprema-se até o bagaço, jogue-se fora e colham-se novos frutos que não foram plantados por quem colhe. A lógica é essa.


É nessa lógica que podemos entender porque o mesmo PAC que destrói uma das maiores galerias de grafite a céu aberto, a da Avenida Central no Morro do Alemão, constrói uma escola chamada Tim Lopes, como a alertar a todos: “educação para evitar que essas sementes do mal se tornem marginais”. É essa a lógica que orienta uma ocupação territorial armada, as UPPs, a colocar policiais para agirem como árbitros culturais, definindo o que pode e o que não pode ser manifestado. Quase sempre o que pode não tem relação com as culturas próprias das favelas, aquelas que articulam resistência e reexistência.


Mas essas culturas sobrevivem. Sobrevivem porque, enquanto culturas de sobrevivência, aprenderam a fazer da dificuldade e do sofrimento as matérias da criação. Sobrevivem porque ressignificam a vida, dão a força e a energia para se continuar. Sobrevivem porque portam vozes imemoriais tornadas contemporâneas que produzem outras versões sobre o que é o mundo e sobre o que ele deveria ser. É o grafite que volta, é baile funk que volta, é o rap desafinando o coro dos contentes ao cantar “Polícia passa e fica a dor”, é o passinho na quebradeira desafiando no corpo as iniciativas de domesticação e instituindo o orgulho dance (“eu sei, você não sabe”, “quero ver fazer igual”, vai?).


Herança da diáspora africana, as culturas das favelas são narrativas que portam a memória de lutas, de experiências compartilhadas que se perpetuam na história por meio das poesias, das músicas, das formas de interação social, da arquitetura e em tantos outros lugares onde a criatividade enfrenta o mundo tal como ele é e ensaia o mundo como vir-a-ser.

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