terça-feira, 20 de abril de 2010

Debate sobre o documentário As muitas faces de uma cidade, UNIOSTE, Foz do Iguaçu, 13/04/2010

por Adriana Facina (professora do Departamento de História da UFF)

Eu queria agradecer ao convite dos meus manos, diretores do documentário As muitas faces de uma cidade, com quem tenho aprendido tanto e vivido tantas experiências significativas, como as do Curso de Formação de Agentes Culturais Populares e do Festival Cultural Fala Favela, ambos realizados na UFF. Acho o Mano Zeu um dos artistas mais talentosos que conheço, mais um daqueles poetas primorosos que surgem nos becos e vielas das periferias brasileiras. Em Danilo Georges percebo o brilho de quem encontrou uma função para o ofício do historiador que me faz lembrar Marc Bloch, o historiador ativista que morreu combatendo o fascismo e que acreditava que a missão da História era compreender o passado para modificar o presente.

Quando vi o documentário pela primeira vez na semana passada, na cópia que eles me enviaram pelo correio, eu estava sem luz em casa, ilhada, mas ainda sem saber exatamente o que havia acontecido em minha cidade, Niterói. A bateria do computador acabou antes do fim do filme e tive de esperar até o dia seguinte para terminar de assisti-lo. Quando a luz voltou, enquanto eu ouvia as notícias sobre os mortos e desabrigados na televisão, via na tela do computador o trecho em que eram mostradas as enchentes e as pessoas que perdiam tudo nas periferias de Foz do Iguaçu. As mesmas histórias em cenários diferentes. Um desespero me invadiu a princípio, um sentimento de revolta impotente, uma raiva. Mas, após desespero, me veio uma ponta de esperança de que essas semelhanças possam ser a raiz para a construção de um novo mundo a ser erguido pelos oprimidos, pelos pobres, pretos, favelados, com sua força de sempre resistir e reconstruir, sua cultura, sua fé na vida. Aliás, se tem uma coisa que é tipicamente favelada é a fé na vida, que vem daquela certeza que se adquire quando se sobrevive a um sofrimento muito grande: eu sobrevivo, "já passei por quase tudo nessa vida", como diria Zeca Pagodinho e, por isso, não tenho medo de "deixar a vida me levar".

No Rio, a reação imediata das autoridades públicas foi culpabilizar os pobres. Usando a desgraça alheia para impor a agenda das remoções almejadas pela especulação imobiliária, o prefeito Eduardo Paes lançou decreto permitindo o uso de força policial para remover moradores de áreas de risco, o que abrange quase toda a cidade. Anunciou ainda a remoção imediata de uma das favelas mais tradicionais da cidade, o Morro dos Prazeres, localizado em região de grande valor imobiliário, e de mais uma dezena de outras a curto prazo. O governador Sérgio Cabral, o mesmo que acusou as mães da favela da Rocinha de serem fábricas de marginais, disse que as pessoas tem de se convencer a não construir moradias nas encostas e ainda culpou aqueles que foram contra os muros que ele mandou erguer para cercar as favelas e impedir sua expansão. Na minha cidade, onde até o momento foram encontrados mais de 150 corpos e há milhares de desabrigados, o prefeito e seu secretário de obras, fiéis escudeiros de uma especulação imobiliária irrefreada que há anos vem depredando a cidade, também apontaram seus dedos em direção daqueles que morreram ou perderam tudo: suas casas, seus documentos, seus entes queridos, sua história.

Talvez o impacto dessa reação daqueles que deveriam ser os primeiros a demonstrarem sua solidariedade às vítimas seja tão profundo e de longo prazo quanto as mortes e toda a devastação que suas sucessivas administrações causaram. Isso porque suas declarações explicitaram e legitimaram algo que vinha se impondo na surdina e sem alarde e, agora, com a máscara de um cinismo que há muito não se via: a imposição de um modelo de cidade que não considera a favela como território cidadão. Mal a ser extirpado ou empurrado para fora do mapa das áreas interessantes para a especulação imobiliária, a favela volta a ser alvo das antigas políticas de remoção que desconsideram algo que o documentário afirma, bem como a cultura que brota desses territórios: Favela é cidade!

Como diz a música do Rappa, o Rio de Janeiro todo é uma favela. Podemos dizer que o Brasil todo é uma favela e, em breve tempo, na visão de Mike Davis, autor do livro Planeta Favela, a maior parte da população mundial será formada por favelados.

Além de um crime contra os direitos humanos, um absurdo constitucional, um abuso de poder político e econômico, a remoção é também um atentado cultural. Como o documentário prova, as favelas e perferias são, e não é de hoje, os locais de onde surgem manifestações culturais potentes e que traduzem na forma de arte experiências coletivas de vida, de resistência, de formas de organização social, de valores como a solidariedade (que se expressa, por ex., nos mutirões. Agora mesmo na tragédia, os bombeiros reconhecem que a atuação dos moradores na remoção das vítimas dos deslizamentos de terra foi fundamental). Da favela nasce o samba, o hip hop, o funk, o grafite, o reggae, o break. Na favela se abrigou o jongo, bem como todos os batuques negros perseguidos secularmente e que assim chegaram ao século XXI. As favelas pulsam, fervilham, cheias de vida gerada por aqueles que vivem todo o tempo sob ameaça: seja da polícia, do descaso dos governantes, de políticas públicas que vêm essas áreas como laboratórios para o urbanismo, para a segurança pública etc. Favela é cultura!

Por isso, considero que uma das partes mais importantes do documentário é justamente a que fala da cultura da favela. A violência, as tragédias, o sofrimento são avidamente consumidos pela mídia corporativa e pela indústria cultural para alimentar o voyerismo das elites e das camadas médias e geralmente são apresentados de modo descontextualizado, estetizado e naturalizado. Esses temas não devem desaparecer do mapa e a produção cultural popular, periférica tem encontrado diversas maneiras de representá-los de modo alternativo, mais contundente, politizando a denúncia das condições de vida dos debaixo. Mas é urgente também tornar visíveis a cultura e a sociabilidade própria das favelas e das periferias e defender que a cidade só tem a ganhar ao assumir esse lado B como sua parte integrante. Quanto mais guetificada a periferia, maior o medo. Quanto maior o medo, maior a barbárie. Quanto maior a bábarie, maior a violência. E mais medo.

O que seria do Rio sem suas favelas? Onde nasceram as escolas de samba? Os craques do futebol? Os artistas populares? A nossa linguagem cotidiana, tão urbana e cheia de gírias? Nasceu lá onde a chapa é quente, o papo é reto, demorô já é, tá ligado?

O que seria o Rio sem a Barra da Tijuca? Ainda seria o Rio, pois aquele local, arquitetado, construído, gerido, depredado sob a batuta da especulação imobiliária, da mercantilização do território urbano é um deserto cultural. Não tem esquinas, nem sociabilidade em locais públicos, sendo os inúmeros shoppings o centro de sua vida social, vida privatizada nas "grades do condomínio que são pra trazer proteção, mas que também trazem a dúvida se é você quem está nessa prisão". Compare com uma das maiores favelas vizinhas ao bairro, a Cidade de Deus, berço do funk, do hip hop carioca, de exímios bboys, de blocos carnavalescos e escolas de samba, de festejos e muita arte, e também de artes de viver e sobreviver.

E é toda essa riqueza que está ameaçada pela lógica cotidiana do extermínio e também pelas propostas de remoções.

Espero que, na contramão do Rio, onde os governantes, incitados como cães raivosos pela mídia burguesa, hoje se voltam violentamente contra o povo favelado e buscam demitir as favelas da sua função de criadoras de uma cultura urbana, Foz do Iguaçu possa encontrar o caminho para a periferia e se reconstruir como um modelo feliz de cidade. Que parem o assassinato de jovens! Que subam as pipas no céu das favelas! No Rio, é só nelas que as crianças ainda tem a liberdade de soltar pipas.

Obrigada e parabéns, meus Manos queridos. Que vocês se aprimorem cada vez mais nas linguagens artísticas, que sejam criativos, que expressem o que se passa em seus corações e mentes,que construam caminhos para as vozes da periferias possam soar alto nos dessa gente que está surda e insensível. Nossa indignação agradece!

3 comentários:

Anônimo disse...

Olha, sei que os governos têm sua culpa nisso, mas eu já morei e convivi com pessoas que tinham condições de sair de uma área de risco, de favelas, porém não queriam, pois alí o custo de vida era mais barato, porque são acomodados, essa é a verdade. Então, entendo o que Cabral quis dizer e apoio, pois a grande maioria quer fazer uma economia que no final acaba valendo a vida.Ainda bem que minha família teve condições, pensou diferente da maioria dos meus conhecidos e saímos de uma área de risco.

disse...

tudo muito certo, tudo muito justo, mas as pessoas precisam mesmo aprender que não podem morar em encostas, barrancos, áreas de risco e tudo mais. qual a melhor forma de tirá-las dali eu não sei.
sobre especulação imobiliária, a favelização também é uma grande especulação imobiliária. as favelas também tem grandes donos.
o quer não pode também são os rios e canos estarem entupidos e velhos por anos e anos, mas enquanto se achar que é obrigação do estado cuidar de tudo, estamos perdidos. o estado não tem condições disso. o rombo só crescerá.
pra mim a causa de tudo é sempre a mesma. os salários de miséria. e aí o povo tem grande culpa; por tanto se submeter.

Antonio Ozaí da Silva disse...

Adriana,

parabéns!
Abraços e tudo de bom,

http://antoniozai.wordpress.com