quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Fala na Audiência Pública sobre o Funk na ALERJ, em 25/08/2009




por Adriana Facina (antropóloga, professora da UFF e membro do OICult)

Bom dia a todos e todas. Eu gostaria de agradecer o convite da Comissão de Direitos Humanos para participar dessa audiência e dizer que estou muito emocionada de ver a transformação impulsionada por um movimento político-cultural ocorrer diante de meus olhos.



Quero começar a minha fala relembrando que o que o funk sofre hoje na verdade é um capítulo de uma história mais antiga de criminalização da cultura negra no Brasil. A perseguição aos batuques que vinham das senzalas, à capoeira, ao maxixe, ao samba, entre outros, fez parte da formação da nossa sociedade, profundamente opressiva com os debaixo. Um exemplo importante dessa perseguição ocorreu quando Pixinguinha e os Oito Batutas, grupo de músicos jovens e de maioria negra, foram convidados a tocar na França em 1922, desencadeando a ira das elites, registrada nos jornais. Segundo Letícia Reis,



“Um articulista deplorava o fato de que fosse mostrado nos boulevards de Paris um Brasil pernóstico, negróide e ridículo (Diário de Pernambuco, 1o de fevereiro de 1922, apud Efegê, 1985: 183), enquanto outro, endossando esta opinião, acrescentava: são oito, aliás, nove pardavascos que tocam viola, pandeiro e outros instrumentos rudimentares. E depois ainda nos queixamos quando chega por aqui um maroto estrangeiro que, de volta, se dá à divertida tarefa de contar das serpentes e da pretalhada que viu no Brasil(Jornal do Comércio, Recife, 1o de fevereiro de 1922, apud Cabral, 1997: 73-74).”[1]



Quanto a cultura brasileira como um todo perderia se vozes como essas tivessem sido silenciadas? Outro músico negro, João da Baiana, que hoje dá nome ao Terreirão do Samba, chegou a ser preso por vadiagem por estar de posse de um pandeiro, instrumento musical associado ao samba, visto então pelas forças da ordem como sinônimo de arruaça e violência. Essas vozes podem parecer rudes, incivilizadas, agressivas aos ouvidos mais sensíveis de seu tempo, mas expressam uma experiência social de modo único, realidades que não vemos nos jornais ou nos livros. No dias de hoje, proibir o baile funk é segregar ou tornar invisível essa experiência do que é ser jovem e favelado em nosso contexto urbano e isso nos impede de entender e transformar os problemas sociais que geraram essa situação.



Criminalizar essa cultura é criminalizar os pobres. De outro modo, como entendermos o tratamento “especial” dado ao funk? Um dos grande mitos, sustentado pelas forças policiais e pela imprensa, é a de que os bailes funks provocam violência e o aumento de ocorrências que ameaçam a ordem urbana. No entanto, sabemos que tais fatos não são exclusivos de bailes funk e sim comuns a qualquer tipo de aglomeração, sobretudo as que envolvem a juventude. Jogos no Maracanã provocam o aumento de ocorrências policiais em seu entorno e nem por isso se tornaram proibidos. Do mesmo modo, micaretas, o réveillon de Copacabana, festas em boate, chopadas e por aí vai. Portanto, fica claro que o problema não é tanto o funk (que, aliás, continuar a ser tocado em boates da Zona Sul, festas em condomínios de classe média, clubes fechados etc.), mas sim quem produz e se diverte com ele.



É preciso garantir aos jovens, negros, pobres, favelados o direito de se expressar no mundo e, sobretudo, o direito de sonhar. Por meio do funk, milhões de jovens deste estado descobrem a possibilidade de investir na carreira musical, fazendo desta um projeto de futuro sonhado. Eles criam expectativas em meio ao deserto de expectativas que são as suas vidas. Ganham auto-estima quando boa parte da sociedade olha para eles como ameaça ou como lixo, como pessoas que seria melhor que não existissem.



A criminalização do funk impossibilita isso e reforça identidades negativas que reservam ao futuro desses jovens a cadeia, a morte ou a infelicidade de uma vida de trabalho escravizante e desprovido de significado.



Por fim, o funk tem de ser alvo de políticas públicas de cultura e não assunto policial ou de segurança pública. Entretanto, essas políticas públicas devem se voltar para atender as demandas dos funkeiros, garantindo sua cidadania cultural e sua autonomia e não a sua instrumentalização e domesticação. É legítimo usar o funk em campanhas educativas e outras do gênero. Mas uma verdadeira política cultural para o funk deve garantir a diversidade e as possibilidades criativas do gênero, que não pode ser refém de um mercado que, por sua busca pelo lucro fácil, só investe no que está na moda, matando a fonte de inspiração da grande diversidade musical que compõe a produção funkeira.



Faço votos de que em futuro próximo o funk possa cantar em alto e bom som como faz o samba na música O samba nunca foi de arruaça, de Ratinho e Monarco:

Existia um certo preconceito


Que nos tirava o direito de sambar com liberdade


Mas apesar do preconceito, o sucesso era perfeito


Quando o samba ia pra cidade

Esperamos que a ALERJ, como casa do povo, e as autoridades públicas aqui presentes promovam os esforços necessários para garantir essa cidadania ao funk e aos funkeiros.



Até a vitória!



[1] “Modernidade com mandinga:samba e política no Rio de Janeiro da Primeira República”. Capturado em http://www.academiadosamba.com.br/monografias/leticiavidor.pdf, em 25.08.2009.

3 comentários:

William Kitzinger disse...

Parabéns, guerreira Adriana!

Parabéns!

miller disse...

espetacular! mais que apoiado!!!

Unknown disse...

Discordo. Apesar de reconhecer que em grande parte a discriminação ao Funk é fruto de preconceito de classe, existe algo que não é preconceito, mas constatação. Não há nada de errado com o estilo em si, o problema está no conteúdo da maioria das letras, não por tratar de assuntos relacionados ao sexo, mas por fazê-lo de uma forma bastante questionável. As letras às quais me refiro incentivam a promiscuidade, denigrem a imagem da mulher, definindo-a como mero objeto de satisfação sexual, muitas vezes incentivam a violência, fazem apologia ao crime e ao consumo de drogas.
Infelizmente esse é o reflexo das condições vividas pela população mais pobre, privada de educação de qualidade, de acesso a muitas formas de lazer e entretenimento, reprimida e discriminada, com poucas oportunidades de promoção social.
É de se esperar que nessas condições ocorram desvios de valores éticos e morais. Os bailes Funk são, não há como negar, eventos de promoção do sexo indiscriminado e inseguro inclusive entre menores, do consumo excessivo de álcool e drogas ilícitas, do crime e da violência como solução ou reparação às péssimas condições de vida impostas. Em resumo, são eventos de promoção da cultura da superficialidade e do prazer imediatista sem avaliação de riscos e consequências.
O Funk como gênero não deve ser criminalizado, tampouco perseguido, mas a pobreza e a ignorância que estão por trás das letras ofensivas e criminosas devem ser combatidas. As canções de Funk não pode ser incentivadas sem passar por um filtro. Existem ótimos exemplos de canções desse gênero com letras boas ou razoáveis, muitas vezes divertidas e bem intencionadas, sem danças ofensivas, o ritmo pode evoluir nessa direção.
Em contrapartida, o estado deve investir na educação e melhoria das condições de vida dessa parcela da população no longo e também no curto prazo.